Documento

Conteúdo do documento

Relator

ANTONIO ANASTASIA

Tipo de processo

RELATÓRIO DE ACOMPANHAMENTO (RACOM)

Data da sessão

11/09/2024

Número da ata

Interessado / Responsável / Recorrente

3. Interessado: Tribunal de Contas da União

Entidade

Ministério de Minas e Energia (MME), Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e Câmera de Comercialização de Energia (CCEE)

Representante do Ministério Público

Procurador Júlio Marcelo de Oliveira

Unidade Técnica

AudElétrica

Representante Legal

não há

Assunto

Acompanhamento com o objetivo de avaliar o processo de abertura gradual do mercado de energia elétrica brasileiro.

Sumário

ACOMPANHAMENTO. AVALIAÇÃO DO PROCESSO DE ABERTURA GRADUAL DO MERCADO DE ENERGIA ELÉTRICA BRASILEIRO. VERIFICAÇÃO QUANTO AO TRATAMENTO DOS RISCOS SISTÊMICOS. AUSÊNCIA DE SISTEMÁTICA DE AVALIAÇÃO DOS RESULTADOS DAS AÇÕES TOMADAS NO PROCESSO DE ABERTURA DE MERCADO. FRAGILIDADES NO PROCESSO DE ANÁLISE TÉCNICA QUE RESULTOU NA PORTARIA MME 50/2022 E NA FUNDAMENTAÇÃO DE DISPENSA DE AVALIAÇÃO DE IMPACTO REGULATÓRIO (AIR). INTEMPESTIVIDADE NO APERFEIÇOAMENTO REGULATÓRIO DA COMERCIALIZAÇÃO VAREJISTA PARA PERMITIR A MIGRAÇÃO PARA O AMBIENTE DE CONTRATAÇÃO LIVRE EM JANEIRO DE 2024. FRAGILIDADES NO TRATAMENTO DOS RISCOS RELEVANTES À COMPETIÇÃO EFETIVA E À EFICIÊNCIA DE MERCADO NA COMERCIALIZAÇÃO VAREJISTA, À PROTEÇÃO AOS CONSUMIDORES E AO TRATAMENTO DE SEUS DADOS. DETERMINAÇÕES. RECOMENDAÇÕES. CIÊNCIAS.

Acórdão

VISTOS, relatados e discutidos estes autos de acompanhamento criado para avaliar o processo de abertura gradual do mercado de energia elétrica brasileiro, verificando o tratamento que está sendo adotado quanto aos riscos sistêmicos identificados, tendo como objeto principal desta primeira fase os possíveis impactos em relação à abertura promovida pela Portaria MME 50/2022 a partir de 1/1/2024, quando foi permitida a migração para o Ambiente de Contratação Livre (ACL) dos consumidores do Grupo A (de alta tensão, igual ou acima de 2,3 kV, a exemplo de indústrias, hospitais, supermercados e shoppings) com demanda inferior a 500 kW,

ACORDAM os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em Sessão do Plenário, com fundamento nos arts. 241, 250, II e III, do Regimento Interno do TCU, nos arts. 4º, 9º, I, e 11 da Resolução TCU 315/2020, e diante das razões expostas pelo Relator, em:

9.1. determinar ao Ministério de Minas e Energia, em conjunto com a Agência Nacional de Energia Elétrica, a elaboração, no prazo de 120 dias, de Plano de Ação para:

9.1.1. verificar o nível de contratação das distribuidoras, por área de concessão;

9.1.2. estimar o impacto financeiro causado ao Ambiente Regulado de Contratação consequente das migrações de consumidores ao Ambiente de Contratação Livre, desde o início da vigência da Portaria MME 514/2018;

9.1.3. de posse das estimativas, verificar a conformidade legal das migrações ao art. 15, § 5º, da Lei 9074/1995;

9.1.4. em caso de inconformidade legal, proceder com as medidas necessárias para garantir o estrito cumprimento legal;

9.2. recomendar ao Ministério de Minas e Energia:

9.2.1. em conformidade com as atribuições normativas correlatas à avaliação de resultados previstas para seus órgãos singulares no Decreto 9.675/2019, e de forma a conformar-se com os princípios e diretrizes da governança pública explicitados no Decreto 9.203/2017, apresente:

9.2.1.1 os objetivos da política de abertura gradual do mercado de energia elétrica, bem como avaliação de resultados e dos impactos causados pelas medidas presentes nas Portarias MME 514/2018 e 465/2019, em especial quanto à redução dos custos de energia, explicitando premissas e metodologia e impactos financeiros causados no Ambiente de Contratação Regulada decorrentes das referidas medidas;

9.2.1.2. metodologia de avaliação de resultados para a abertura promovida pela Portaria MME 50/2022 e próximas fases, contendo metas e indicadores, responsabilidades, premissas e cronograma avaliativo;

9.2.2. a realização, no ano de 2024, da Avaliação de Resultado Regulatório (ARR) previsto pelo Comitê Permanente de Avaliação de Impacto Regulatório (CPAIR), para avaliar os resultados e impactos da abertura de mercado para o Grupo A;

9.2.3. a realização, no prazo de 180 dias, de Avaliação de Impacto Regulatório (AIR) ou estudos de impacto que possam subsidiar medidas legislativas (projetos de lei ou medidas provisórias) previamente às medidas de flexibilização necessárias para a abertura de mercado do Grupo B;

9.2.4. em conjunto com a Agência Nacional de Energia Elétrica e com a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica, desenvolva e implemente uma estratégia de comunicação eficaz e abrangente para informar e conscientizar os consumidores sobre o funcionamento do mercado livre de energia e os riscos associados à migração;

9.2.5. realize estudos e análises para definir a viabilidade e necessidade de se criar, por meio de proposta legislativa ou normativa, a figura do Supridor de última Instância (SUI) no processo de liberalização gradativa do mercado de energia no Brasil, definindo suas características, atribuições e contornos jurídico-regulatórios, para posterior regulamentação pela Aneel;

9.3. dar ciência ao Ministério de Minas e Energia de que:

9.3.1. a falta de avaliação quanto aos impactos causados ao ambiente de contratação regulado, decorrentes da migração de consumidores para o ambiente de contratação livre, pode resultar no descumprimento do disposto no art. 15, § 5º, da Lei 9.074/1995;

9.3.2. está em desconformidade com o disposto no art. 5º da Lei 13.874/2019 a dispensa de Avaliação de Impacto Regulatório (AIR) em processo de abertura de mercado para consumidores do Grupo A com carga inferior a 500 kW, em que há, no mínimo, dúvidas razoáveis quanto à possibilidade de impactos regulatórios advindos de riscos não completamente mitigados como a sobrecontratação das distribuidoras, ineficácia de mecanismos de gestão de portfólios e previsão de novas atividades para agentes do setor decorrentes de adequações substantivas no modelo de migração e adesão ao mercado livre;

9.4. dar ciência ao Ministério de Minas e Energia e à Agência nacional de Energia Elétrica de que a inércia em promover os aprimoramentos regulatórios decorrentes da Portaria MME 50/2022 apresenta uma série de riscos ao Setor Elétrico Brasileiro, não apenas aos consumidores que podem optar pela migração para o Ambiente de Contratação Livre, mas para os demais consumidores e agentes de distribuição, além de comprometer a previsibilidade necessária ao bom funcionamento do mercado;

9.5. determinar à Agência Nacional de Energia Elétrica que, no prazo de 120 dias:

9.5.1. em conformidade com as atribuições normativas previstas nos incisos VIII e IX do art. 3º da Lei 9.427 e nos arts. 25 a 27 da Lei 13.848/2019 e, de forma a endereçar o risco de competição inefetiva no mercado varejista:

9.5.1.1. estabeleça, formalmente, sistemática de acompanhamento periódico para avaliar as condições competitivas do mercado varejista e a efetividade da competição;

9.5.1.2. elabore estudo para determinar quais os aprimoramentos regulatórios e medidas fiscalizatórias necessárias para garantir o adequado tratamento dos dados dos consumidores em conformidade com o previsto na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD);

9.5.2. estabeleça plano de ação de fiscalização para verificar a situação das empresas verticalizadas no setor de energia elétrica (que atuem nas atividades de distribuição e comercialização), incluindo a identificação de possíveis práticas anticompetitivas e a verificação do cumprimento das normas de proteção de dados pelos agentes do setor;

9.6. recomendar à Agência Nacional de Energia Elétrica que:

9.6.1. adote providências no sentido de priorizar o aprimoramento previsto na Agenda Regulatória 2024-2025 que trata da padronização e simplificação do processo de migração para o Ambiente de Contratação Livre, de forma a evitar a discrepância de exigências, procedimentos e prazos entre as distribuidoras e assim contribuir para o acesso isonômico ao mercado livre;

9.6.2. que estude a possibilidade de implementar uma ferramenta de comparação centralizada, disponível em website independente, para facilitar a comparação entre as ofertas de produtos padronizados oferecidos por comercializadores varejistas de energia;

9.6.3. explore possíveis aprimoramentos regulatórios que visem melhorar o tratamento de dados dos consumidores pelas distribuidoras de energia elétrica, incluindo a elaboração de normas específicas para o setor de energia elétrica que levem em consideração suas particularidades e desafios;

9.6.4. estude a implementação do conceito de open energy no mercado livre de energia elétrica, de forma similar ao que ocorre no setor bancário com o open banking, considerando as particularidades do setor elétrico;

9.7. dar ciência à Agência Nacional de Energia Elétrica de que a realização de consulta pública para aperfeiçoamento regulatório do comercializador varejista e simplificação do processo migração para o mercado livre, sem todos os elementos relativos ao "novo processo estrutural de acesso ao mercado livre", detalhado pela Câmera de Comercialização de Energia em sua contribuição à Consulta Pública 28/2023, está em contrariedade ao que determina o art. 9º, § 3º, da Lei 13.848/2019;

9.8. retornar os autos à AudElétrica para prosseguimento do acompanhamento do processo de abertura do mercado de energia elétrica.

Quórum


13.1. Ministros presentes: Bruno Dantas (Presidente), Benjamin Zymler, Augusto Nardes, Jorge Oliveira, Antonio Anastasia (Relator) e Jhonatan de Jesus.
13.2. Ministro-Substituto convocado: Augusto Sherman Cavalcanti.

Relatório

Este processo trata de acompanhamento criado para avaliar o processo de abertura gradual do mercado de energia elétrica brasileiro, verificando o tratamento que está sendo adotado quanto aos riscos sistêmicos identificados.

2. Transcrevo, a seguir, parte do relatório elaborado pela equipe da AudElétrica (peça 109), que contou com a anuência dos dirigentes daquela unidade (peças 110 e 111):

"I. INTRODUÇÃO

Trata-se de fiscalização do tipo Acompanhamento, autorizada pelo Exmo. Ministro Antonio Anastasia, pelo Despacho de 14/7/2023, tendo como objeto ações do Ministério de Minas e Energia (MME), da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) e de outras entidades do Setor Elétrico Brasileiro (SEB) relacionadas ao processo gradual de abertura do mercado de energia elétrica.

Objetivos e escopo do trabalho

O objetivo geral do Acompanhamento foi avaliar o processo de abertura gradual do mercado de energia elétrica brasileiro, verificando se há tratamento adequado para os riscos sistêmicos identificados por stakeholders diversos. Considerando que este acompanhamento irá se desdobrar em outras fases, tendo em vista a natureza gradativa do processo de abertura, o objetivo específico desta primeira fase do Acompanhamento é verificar em que medida os riscos que podem impactar o processo de migração dos consumidores do Grupo A com demanda inferior a 500 kW, que começou a partir de 1º/1/2024, conforme autorizado na Portaria Normativa MME 50/2022, foram efetivamente tratados e mitigados.

Não é escopo da fiscalização avaliar outras medidas no âmbito da Modernização do Setor Elétrico, bem como riscos relativos à expansão da mini e microgeração distribuída (MMGD), renovação dos contratos de concessão das distribuidoras, bem como outros assuntos que são tangenciados neste relatório.

As análises realizadas no planejamento dos trabalhos indicaram que os principais problemas de auditoria estariam relacionados a: governança do processo de abertura gradual do mercado de energia elétrica; mitigação de riscos para a abertura realizada pela Portaria MME 50/2022; adequação do arcabouço regulatório da atual fase da abertura de mercado, com foco na comercialização varejista; e segurança e competição do mercado.

Esses pontos foram traduzidos nas seguintes questões de auditoria:

Questão I - O processo de abertura de mercado tem governança institucionalizada, indicação de objetivos, atribuição de competências, interlocução institucional estruturada e sistemática de avaliação das medidas?

Questão II - A abertura de mercado definida pela Portaria MME 50/2022 obedece aos princípios da legalidade, razoabilidade, transparência e motivação, tendo sido precedida das análises pertinentes de impacto, medidas necessárias de mitigação de riscos, adequação normativa com o ordenamento jurídico e regras do Setor Elétrico?

Questão III - O arcabouço normativo-regulatório que trata sobre migração de consumidores ao mercado livre e sobre comercialização varejista é adequado para suportar a expansão do mercado livre com o advento da Portaria MME 50/2022?

Questão IV - A atuação dos órgãos competentes - formulador de política (MME), regulador/fiscalizador (Aneel) e do operador de mercado (CCEE) - é adequada e suficiente para garantir a segurança do mercado livre e a competição justa no âmbito da comercialização varejista, considerando a próxima fase da abertura do mercado e a expansão do número de consumidores livres e de comercializadores?

Metodologia e critérios

Para a realização do trabalho foram utilizados os princípios, padrões, métodos e técnicas definidos no Manual de Auditoria Operacional do TCU, aprovado pela Portaria-Segecex 18/2020, e as diretrizes das Normas de Auditoria do Tribunal de Contas da União (NAT-TCU).

Na fase de planejamento, as principais atividades realizadas foram: análise de normativos e documentos do MME, da Aneel e da CCEE; reuniões com os gestores e especialistas (peça 48) e análise de respostas fornecidas pela Aneel, pelo MME e pela CCEE aos ofícios de requisição de informações. A partir dessas informações, elaborou-se a Matriz de Planejamento da auditoria (peça 49).

Na fase de execução foram realizadas as seguintes atividades: entrevistas com gestores e representantes da Aneel, do MME, da CCEE, bem como entidades representativas do setor elétrico como Associação Brasileira de Comercializadores de Energia (Abraceel), Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (ABRACE), Frente Nacional dos Consumidores, além de especialistas no setor como a FGV/Ceri, PSR e GESEL/Ufrj; análise de processos administrativos do MME e Aneel, em especial o que resultou na Portaria MME 50/2022 e os das Consultas Públicas MME 131/2022 e Aneel 28/2023 e Tomada de Subsídios 10/2021-Aneel; análise de riscos associados à abertura de mercado bem como das discussões e diretrizes do Grupo de Trabalho (GT) de Modernização do Setor Elétrico, instituído pela Portaria MME 187/2019.

A Matriz de Achados (peça 50) foi elaborada com base nos resultados obtidos na fase de execução e fundamentou esse relatório de auditoria.

Em 8/11/2023, foi realizado Painel de Referência com os gestores e especialistas do setor para apresentação dos achados. Entre os 37 participantes do painel, estavam representantes do MME, da Aneel e da CCEE.

O relatório preliminar foi enviado aos gestores dos órgãos e entidades envolvidos para que pudessem adicionar seus comentários, em observância ao Manual de Auditoria Operacional do TCU.

As manifestações dos gestores respondentes (MME, Aneel e CCEE) acerca do relatório preliminar de auditoria encontram-se nas peças 99 a 102, as quais foram consideradas neste relatório final e cujas análises encontram-se na peça 108 dos autos.

Considerando o objeto definido para a fiscalização, foram utilizados os seguintes critérios legais, normativos e contratuais: Constituição Federal de 1988; Lei 9.784/1999 (processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal); Lei 9.427/1996 (Institui a Agência Nacional de Energia Elétrica, disciplina o regime das concessões de serviços públicos de energia elétrica); Lei 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica); Lei 13.848/2019 (Lei das Agências reguladoras); Lei 10.848/2004 (Comercialização de Energia Elétrica); Lei 9.074/1995 (Normas para outorga e prorrogações das concessões e permissões de serviços públicos; Lei 13.360/2016 (altera leis do setor elétrico); Lei 4.904/1965 (organização do Ministério das Minas e Energia); Lei 12.529/2011 (prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica); 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados); Decreto 9.203/2017 (Governança da Administração Pública Federal); Decreto 10.411/2020 (Regulamenta a análise de impacto Regulatório); Referencial de Controle de Políticas Públicas do TCU (Item 2.10); e Referencial para Avaliação de Governança em Políticas Públicas do TCU (item 3.1.7).

Limitações inerentes à auditoria

Vislumbra-se como limitação da presente fiscalização o fato de a abertura do mercado autorizada por meio da Portaria MME 50/2022 ter iniciado em janeiro de 2024, em um horizonte temporal muito próximo ao início dos trabalhos de fiscalização, o que representou dificuldades para elaboração de propostas de encaminhamento em tempo hábil para que os gestores pudessem adequar o processo às sugestões apresentadas nesse relatório. Outro aspecto que influencia o alcance e acurácia dos exames realizados neste trabalho é o fato de o objeto da fiscalização estar em constante processo de mudança; cite-se que o assunto estava, no momento da elaboração do Relatório, em discussão na Agência Reguladora, com mudanças esperadas ainda para o exercício de 2023 (Consulta Pública Aneel 28/2023), bem como no Congresso Nacional, por meio de diferentes Projetos de Lei.

Ademais, o tema tem implicações e sinergia com diversos assuntos e processos atuais do Setor Elétrico Brasileiro, o que requer análises multifatoriais. Além disso, a análise de causas, efeitos e medidas de mitigação de riscos em relação ao tema pode abarcar temas que vão além do processo de abertura de mercado, o que pode eventualmente restringir o alcance das propostas elencadas.

Organização do Relatório

Organizou-se o conteúdo deste relatório, além dessa Introdução, em outros cinco capítulos.

O presente capítulo (Capítulo I) aborda os elementos introdutórios do relatório, envolvendo objetivos, escopo, critérios e metodologia.

O Capítulo II contém a visão geral do objeto, incluindo breve contextualização sobre aspectos gerais do processo de abertura do mercado.

No Capítulo III é realizado o exame técnico, buscando respostas para as quatro questões de auditoria e apresentando os respectivos achados:

Achado 1 - Inexistência de sistemática de avaliação dos resultados das ações tomadas no processo de abertura de mercado;

Achado 2 - Fragilidades no processo de análise técnica que resultou na Portaria MME 50/2022 e na fundamentação de dispensa de análise de impacto regulatório (AIR);

Achado 3 - Intempestividade no aperfeiçoamento regulatório da comercialização varejista para permitir a migração para o Ambiente de Contratação Livre (ACL) em janeiro de 2024; e

Achado 4 - Fragilidades no tratamento dos riscos relevantes à competição efetiva e à eficiência de mercado na comercialização varejista, à proteção aos consumidores e ao tratamento de seus dados.

Finalmente, os Capítulos IV e V apresentam, respectivamente, as conclusões e a proposta de encaminhamento.

Benefícios de controle

Os benefícios de controle esperados como resultado da implementação das propostas de determinações, recomendações e ciências elencadas na presente fiscalização podem ser classificados, nos termos da Portaria-Segecex 37/2018, como 'benefícios diretos' qualitativos do tipo: 'incremento da economia, eficiência, eficácia ou efetividade de órgão ou entidade da administração pública'.

De maneira mais específica, espera-se que os encaminhamentos propostos contribuam para o aperfeiçoamento da governança; estabelecimento de sistemática de avaliação de resultados; desenvolvimento de metas e indicadores; gerenciamento mais efetivo e mitigação de riscos sistêmicos; aperfeiçoamento dos marcos regulatórios, das medidas de fiscalização e da transparência social das ações governamentais voltadas ao processo de abertura de mercado de energia brasileiro.

Volume de Recursos Fiscalizados

23. Nos termos do §3º, do art. 1º, da Portaria TCU 222/2003, a mensuração do VRF não se aplica ao presente Relatório de Acompanhamento, uma vez que o objeto da fiscalização não é quantificável e não é possível a mensuração efetiva dos recursos envolvidos.

II. VISÃO GERAL DO OBJETO

Contextualização

As discussões acerca do processo de abertura do mercado de energia elétrica no Brasil vêm se intensificando desde o ano de 2015, com a apresentação do Projeto de Lei 1.917/2015 (conhecido como o PL da 'portabilidade das contas de luz'), e, posteriormente, por meio do PLS 232/2016, encaminhado ao Senado Federal e redenominado PL 414/2021, que dispõe sobre o modelo comercial do setor elétrico e trata do processo de abertura gradual do mercado de energia brasileiro.

O MME promoveu nos últimos anos diversas consultas públicas com o objetivo de colher junto à sociedade organizada e aos agentes do setor subsídios sobre o processo de liberalização do mercado de energia, com destaque para as Consultas Públicas (CP) 21/2016 e 33/2017, que trataram da modernização e aprimoramento do modelo do setor elétrico, incluindo a previsão de expansão do mercado livre de energia.

Com base na Lei 10.848/2004 e no Decreto 5163/2004, convém destacar, para fins conceituais, que o mercado de comercialização de energia no Brasil é baseado em contratos que podem ser firmados no Ambiente de Contratação Regulada (ACR) ou no Ambiente de Contratação Livre (ACL). O Ambiente Regulado é formado pelos consumidores que adquirem energia das distribuidoras de energia, em uma relação comercial de 'varejo' regulada, pagando tarifas homologadas pela Aneel, de acordo com sua categoria de consumo, e, nas quais, não há margem de negociação 'livre' de preço entre as partes.

Já o Ambiente de Contratação Livre é formado pelos consumidores que atendem determinados requisitos previstos na legislação para participação no mercado livre e exercem essa faculdade, de modo a realizar operações de compra e venda de energia livremente negociadas entre as partes em relação a preço, prazo, montante, sazonalidade e outras características.

A figura do Consumidor Livre foi criada pela Lei 9.074/1995, em seus arts. 15 e 16, como aquele que, atendidos requisitos mínimos, pode optar pela compra de energia elétrica de qualquer concessionário, permissionário ou autorizado de energia elétrica do Sistema Interligado Nacional - SIN. Conforme o §3º do art. 15, decorridos oito anos da publicação da Lei (ou seja, a partir de 2003), o Poder Concedente poderia diminuir os requisitos de carga e tensão estabelecidos naqueles artigos.

Com base na previsão do §3º do art. 15, da Lei 9.074/1995, o MME vem publicando portarias no sentido de diminuir os limites de carga para contratação de energia no Ambiente de Contratação Livre, ou, Mercado Livre. A Portaria MME 514/2018, por exemplo, reduziu o limite para migração de consumidores com carga acima de 2.500 kW a partir de 1º/7/2019 e para 2.000 kW a partir de 1º/1/2020.

Sobre o Mercado Livre de Energia no Brasil

O mercado livre de energia vem crescendo de forma relevante ao longo dos anos, fruto da busca por melhores condições de preço e flexibilidade na aquisição de energia. De acordo com a CCEE, em 2022, o ACL já representava mais de 36% do mercado da energia consumida no País. Como se observa na Figura 1, o mercado livre vem aumentando sua participação de forma gradativa, desde 2015.

Figura 1 - Evolução do ACL x ACR - 2013 a 2022 (Fonte: Balanço Consumo e Geração 2022, CCEE, peça 51, p. 5.).

A quantidade de agentes de consumo presentes no mercado livre também aumentou exponencialmente, bem como de unidades consumidoras; sublinha-se que a quantidade de agentes de consumo na CCEE não é igual à de unidades consumidoras, uma vez que cada agente pode ter em seu perfil diversas unidades consumidoras.

Figura 2 - Quantidade de agentes associados à CCEE, por categoria - 2013 a 2022 (Fonte: Balanço Consumo e Geração 2022, CCEE, peça 51, p. 27.).

Ressalta-se que os associados à CCEE são agentes que podem atuar no setor de energia na categoria geração (Geradores Concessionários de Serviço Público, Produtores Independentes de Energia e Autoprodutores), distribuição (Concessionárias e Permissionárias do serviço de distribuição) e comercialização (Comercializadores, Consumidores Livres e Consumidores Especiais), com participação obrigatória ou facultativa, conforme o caso. Na Figura 3, é possível observar a evolução da quantidade de unidades consumidoras habilitadas junto à CCEE.

Figura 3 - Evolução da quantidade de unidades consumidoras na CCEE (Fonte: Proposta Conceitual para a Abertura do Mercado, CCEE, peça 52, p. 14.).

Portanto, o crescimento acentuado do mercado livre de energia no Brasil demonstra a atratividade e competitividade desse ambiente de comercialização nos últimos anos, com destaque para as alterações e os aprimoramentos ocorridos na legislação e no âmbito regulatório que resultaram na flexibilização dos requisitos de entrada.

A percepção das vantagens do mercado livre de energia para os consumidores, com a possibilidade de maior liberdade na escolha de seus fornecedores, tanto em relação ao preço como em relação à fonte, está inserida no contexto de um movimento de liberalização econômica e maximização do papel dos agentes do mercado, reduzindo a intervenção governamental neste mercado.

No entanto, o processo de abertura apresenta grau elevado de complexidade e uma série de desafios para o Setor Elétrico, na medida em que se evidenciam diversas distorções na alocação de custos e riscos entre os diferentes ambientes de mercado, que podem ser ampliados e agravados, caso os atores do setor (governo, instituições, agentes e empresas) não sejam capazes de adotar medidas mitigadoras, mudanças regulatórias e consensos em torno de uma abertura gradual e planejada.

Grupo de Trabalho de Modernização do Setor Elétrico, Consultas Públicas 63/2018, 77/2019 e

131/2022, e Portaria Normativa 50/GM/MME/2022

Avançando nas discussões sobre abertura de mercado, o MME instituiu a Consulta Pública 63/2018. Na ocasião, foi submetida minuta de Portaria Ministerial que visava regulamentar o disposto no §3º do art. 15 da Lei 9.074/1995.

A CP resultou na Portaria MME 514/2018, que flexibilizou os requisitos de carga e tensão para a compra de energia no mercado livre de maneira periódica, até o grupo com carga igual ou superior a 2000kW. Essa seria a primeira oportunidade na qual o Ministério exerceria sua opção dada pelo §3º do art. 15 da Lei 9.074/1995.

Em ato posterior, por meio da Portaria MME 187/2019, foi instituído Grupo de Trabalho para desenvolver um conjunto de propostas para a modernização do Setor Elétrico, abarcando diversos temas, como: o ambiente de mercado e mecanismos de viabilização da expansão do setor elétrico; mecanismos de formação de preços; alocação de custos e riscos; inserção de novas tecnologias; dentre outros eixos temáticos. Nesse sentido, o Grupo de Trabalho realizou um amplo diagnóstico do funcionamento do SEB, bem como das diversas iniciativas de aperfeiçoamento do quadro legal e regulatório já realizadas ou iniciadas, como a CP 21/2016, a CP 33/2017 e a CP 63/2018, todas do MME, e iniciativas legislativas então em discussão, de forma a verificar a interdependência entre elas e propor um Plano de Ações coordenado.

No âmbito do GT, a abertura de mercado foi definida como um dos pilares do processo de modernização do setor e foi objeto de trabalho de grupo temático específico. O relatório do Grupo Temático 'Abertura de Mercado' (peça 53), analisando o histórico de contribuições do Setor às Consultas Públicas 21/2016, 33/2017 e 63/2018, todas do MME, definiu a necessidade de remover barreiras de participação de agentes no mercado livre com o objetivo de alcançar um ambiente de mercado ativo em que novos agentes sejam capazes de tomar a decisão de fazer parte, incluindo não apenas consumidores do segmento do atacado, mas também no nível do varejo.

Sumarizando os pontos fundamentais de propostas de ações consensuadas no âmbito do Grupo Temático 'Abertura de Mercado' do GT de Modernização do Setor Elétrico, tem-se os seguintes pontos:

a) Abertura de mercado de forma gradativa e completa, com plano de liberalização do mercado que inclua o segmento de baixa tensão;

b) Redução e extinção da reserva de mercado para energia especial;

c) Separação entre atacado e varejo, com atribuição de limites de consumidores e agentes varejistas junto à CCEE;

d) Aumento de robustez do mercado livre, envolvendo periodicidade da liquidação, garantias financeiras e bolsa de energia (clearing house); e

e) Possibilidade de redução da obrigação de contratação da totalidade da carga para o mercado livre, distribuidoras e comercializadoras.

O relatório final do GT contava também com plano de ação indicando cronograma de implementação de medidas no âmbito da abertura de mercado.

Dando sequência às ações de abertura do mercado livre, o MME promoveu a Consulta Pública 77/2019, com objetivo de alterar a redação da Portaria 514/2018 e flexibilizar novamente os requisitos de carga e tensão para participação no mercado livre de energia.

Como resultado, foi editada a Portaria 465/2019, que alterou a Portaria 514/2018, e apresentava cronograma de flexibilização de requisitos de carga e tensão até o grupo de consumidores com carga igual ou maior a 500 kW.

Desta forma, a flexibilização promovida pelas portarias teria o seguinte cronograma: em 1º/7/2019 os consumidores com carga igual ou superior a 2.500 kW, atendidos em qualquer tensão, estariam aptos a escolherem por adquirir energia diretamente de qualquer concessionário, permissionário ou autorizado do SIN (art. 1º, § 1º); em janeiro de 2020, os consumidores com carga igual ou superior a 2.000kW; em 2021, igual ou superior a 1.500 kW; e assim sucessivamente até 2023, quando os consumidores com carga igual ou superior a 500 kW estariam aptos à migração, conforme Figura 4.

Figura 4 - Escalonamento do requisito de carga para ampliação do mercado livre (Fonte: Proposta

Conceitual para Abertura do Mercado, CCEE, peça 52, p.9)

Para prosseguir com a abertura do mercado livre aos consumidores com carga inferior a 500 kW, a partir de 2024, a Portaria MME 514/2018 dispôs em seu §6º que a Aneel e a CCEE deveriam apresentar estudos sobre as medidas regulatórias necessárias para possibilitar essa abertura:

§ 6º Até 31 de janeiro de 2022, a Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL e a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica - CCEE deverão apresentar estudo sobre as medidas regulatórias necessárias para permitir a abertura do mercado livre para os consumidores com carga inferior a 500 kW, incluindo o comercializador regulado de energia e proposta de cronograma de abertura iniciando em 1º de janeiro de 2024.

Tais estudos foram apresentados por meio da Carta CT CCEE05492/2021 (Proposta

Conceitual para a Abertura de Mercado, peça 52), de 29/9/2021, e da Nota Técnica 10/2022SRM/ANEEL (Medidas regulatórias necessárias para a abertura do mercado livre para consumidores com carga inferior a 500 kW, peça 54). O teor destes estudos será tratado de forma mais pormenorizada adiante.

Posteriormente, o MME submeteu minuta da portaria de abertura do mercado para todo o restante do grupo de consumidores de alta tensão (Grupo A) para discussão dos diversos stakeholders do setor, por meio da Consulta Pública 131/2022.

Foi então editada a Portaria MME 50/2022, que faculta aos consumidores classificados como Grupo A a comprar energia elétrica de qualquer Concessionário, Permissionário ou autorizado de energia elétrica a partir de 1º de janeiro de 2024.

A Portaria, por meio do seu §2º, determinou que os consumidores do Grupo A com carga individual inferior a 500 kW, no exercício da sua faculdade de participar do ambiente livre de contratação, serão representados por agente varejista perante a CCEE.

Potencial de migração do Grupo A e projeções para janeiro/2024

A CCEE elaborou em 2022 estudo para avaliar o potencial de migração de consumidores do Grupo A para o mercado livre, usando como base informações da base de dados da Aneel para dimensionar o público-alvo da abertura de mercado.

O mercado de energia brasileiro é composto de 89,6 milhões de unidades consumidoras (UCs), que respondem pelo consumo de 67,2 mil MW médios (dados de janeiro/2023); desse total, cerca de 202 mil unidades consumidoras compõem o Grupo A (alta tensão), entre mercado livre e regulado, correspondendo a 32 mil MW médios.

Destes 202 mil UCs no Grupo A, cerca de 31,1 mil já estariam no mercado livre, com projeção para chegar a 37 mil até janeiro de 2024. Existe, portanto, um mercado potencial de 170 mil UCs ainda no ambiente regulado, sendo que estes respondem por uma carga menor (cerca de 7,5 mil MW médios).

Projetando o cenário para janeiro, o documento da CCEE entende que o universo total de UCs do Grupo A ainda no mercado cativo seria de 165 mil, que correspondem a 6,5 mil MW; no entanto, deve ser considerado que parte significativa do Grupo A já aderiu à MMGD, o que significa que não haverá interesse para migrarem para o mercado livre. Assim, restam 72 mil unidades consumidoras como potencial econômico para migração, a partir de janeiro de 2024, conforme Figura 5, elaborada pela CCEE.

Figura 5 - Potencial de migração para o ACL em 2024 (Fonte: CCEE, peça 55, p. 11).

Para acompanhar o avanço do processo de desligamento formal dos consumidores das distribuidoras, primeira fase da migração dos potenciais consumidores para o ACL, a Aneel implantou um sistema de Business Intelligence, que consolida dados informados pelas concessionárias. De acordo com a Aneel, esse procedimento foi instituído pelo Ofício Circular nº 001/2023-SGM/ANEEL com vistas a avaliar o efeito da Portaria 50/2022 e balizar a mudança a ocorrer em janeiro de 2024.

De acordo com as informações desse sistema (consulta em 16/11/2023), já são mais de 10.500 unidades consumidoras em processo de migração, sendo 2,9 mil previstas para migrar em janeiro/2024, correspondendo a um montante de carga de 784 MW médios.

Figura 6 - Solicitações de migração para 2024 (Fonte: https://www.gov.br/aneel/pt-br/centrais-deconteudos/relatorios-e-indicadores/comercializacao).

Na Tabela 1, destacam-se as dez maiores concessionárias em termos de unidades consumidoras em processo de migração.

Tabela 1 - Unidades Consumidoras em migração por distribuidora em novembro/2023 (Fonte:

https://www.gov.br/aneel/pt-br/centrais-de-conteudos/relatorios-e-indicadores/comercializacao)

Distribuidora Carga Número de UCs

MWm

Neoenergia Coelba

67,21

1040

Enel SP

78,03

1021

CPFL Paulista

39,73

760

Copel-DIS

51,01

759

Celesc-DIS

65,59

722

RGE

29,22

634

Cemig-D

30,82

606

Light

39,29

495

CPFL Piratininga

28,19

467

Enel CE

30,83

455

Os dados apresentados dão dimensão da relevância e do impacto que o processo de flexibilização dos requisitos de carga para adesão ao ACL representa no estágio de abertura do mercado de energia elétrica brasileiro, atualmente em curso.

III. EXAME TÉCNICO

58. Neste capítulo, passa-se a apresentar, na forma de tópicos organizados por assuntos abordados nas questões de auditoria, o teor das análises que constituem o cerne do exame técnico do presente Relatório de Acompanhamento.

II.1. Aspectos da Governança e Institucionalização do Processo de Abertura de Mercado

Este tópico descreve a situação encontrada pela equipe de auditoria na condução dos exames técnicos relacionados à primeira Questão de Auditoria deste trabalho de fiscalização: 'O Processo de abertura de mercado tem governança institucionalizada, indicação de objetivos, instituição de competências, interlocução institucional estruturada e sistemática de avaliação das medidas?'

A análise em questão teve objetivo de verificar a presença e a efetividade de elementos de governança na condução do processo de abertura de mercado, em especial quanto à: (i) institucionalização formal da política por meio de normativos; (ii) presença de instâncias de interlocução e cooperação institucional na condução do processo; (iii) existência de objetivo claro e de respeito ao princípio da motivação; e (iv) existência de sistemática de avaliação de resultados das ações tomadas no processo.

Como achado, registrou-se: falta de avaliação de resultados e impactos das ações adotadas no âmbito do processo de abertura de mercado, em desacordo com o disposto no Decreto 9.203/2017 e com boas práticas de avaliação de políticas públicas presentes no Referencial de Controle de Políticas Públicas do TCU.

Institucionalização

De acordo com o Referencial para Avaliação de Governança em Políticas Públicas do TCU, a institucionalização de uma política pública se refere a aspectos, formais ou informais, da existência da política, relacionados a capacidades organizacionais, normatização, padrões, procedimentos, competências e recursos que possibilitam o alcance dos objetivos e resultados da política pública.

Ainda de acordo com o Referencial, são boas práticas de governança relacionadas à institucionalização de políticas: (i) a institucionalização formal da política por meio de norma legal; (ii) a definição clara e formal das competências das principais partes interessadas envolvidas na política; (iii) institucionalização formal dos processos decisórios referentes à política pública e (iv) a existência de um marco regulatório que não prejudique a condução da política por excessos de formalismo.

Durante o exame, identificou-se que a política de abertura de mercado está parcialmente institucionalizada na Lei 9.074/1995, tendo em vista que o legislador criou a possibilidade de comercialização livre de energia e atribuiu ao poder concedente a competência de flexibilizar e ampliar essa comercialização. No entanto, a institucionalização não é plena, pois não há marco normativo único que defina a abertura de mercado como política pública e, como decorrência, atribua papeis institucionais de forma coordenada e coerente. Além disso, as ações ministeriais foram conduzidas sem uma diretriz geral que indicasse o caminho a ser seguido na intervenção.

Apesar do cenário encontrado não ser o ideal quando cotejado com as melhores práticas de governança presentes nos manuais, entende-se que a situação não se constitui como achado de auditoria, por não possuir relevância suficiente no contexto e ter um nível baixo de risco associado. Ainda assim merece atenção, considerando a possível futura abertura do mercado livre de energia para os consumidores de baixa tensão.

Coordenação e interlocução institucional

Um dos pontos de interesse na análise quanto a governança do processo de abertura era o da existência e efetividade de instâncias de articulação e coordenação institucional na condução da política.

A coordenação e interlocução institucional são aspectos fundamentais da política de governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, conforme estabelecido pelo Decreto 9.203/2017. A articulação eficaz entre instituições e a definição clara de funções, competências e responsabilidades são essenciais para a implementação efetiva de políticas públicas. Nesse contexto, o MME desempenha um papel crucial na formulação e implementação de políticas públicas no setor de energia elétrica.

Apesar de desafios, há evidências de coordenação e interlocução institucional em várias iniciativas e processos. Exemplos disso incluem a Consulta Pública 21/2016, a Consulta Pública 63/2018, a criação do Grupo de Trabalho de Modernização do Setor Elétrico e a instituição do Comitê de Implementação da Modernização do Setor Elétrico (CIM). Essas iniciativas demonstram a cooperação entre diferentes entidades na implementação das políticas públicas.

No entanto, foi identificada ausência de coordenação contínua e cooperação entre as diferentes entidades envolvidas na implementação da política pública. A cooperação institucional ocorreu de forma pontual nos processos que resultaram na edição das portarias, e pode não ter sido suficientemente efetiva para abordar todos os riscos e desafios associados à implementação das políticas.

Não obstante ser uma fragilidade identificada, entende-se que a situação não se constitui em achado de auditoria, já que aspectos mais específicos de falhas encontradas serão abordados nos demais achados. Ainda que a criação de uma instância perene de articulação institucional seja uma boa prática, o que se constatou no caso em questão é que, apesar da ausência de instância formal, as instituições responsáveis conseguiram colaborar efetivamente na implementação da política.

Achado 1 - Inexistência de sistemática de avaliação dos resultados das ações tomadas no processo de abertura de mercado.

Situação encontrada:

Foi identificada a falta de avaliação de resultados e impactos das ações adotadas no âmbito do processo de abertura de mercado, em desacordo com o disposto no Decreto 9.203/2017 e com boas práticas de avaliação de políticas públicas presentes no Referencial de Controle de Políticas Públicas do TCU, decorrentes da ausência de indicadores de desempenho e da inércia em proceder com avaliações, resultando em baixo grau de conhecimento da efetividade do processo de abertura, desconhecimento do nível dos efeitos adversos sobre o ACR e em outros possíveis riscos não mitigados.

Análise

No âmbito do poder discricionário concedido pela Lei 9.074/1995 ao Ministério de Minas e Energia para flexibilizar os critérios de potência e tensão para compra de energia elétrica no ambiente livre de contratação, o MME editou três Portarias: (i) Portaria 514/2018; Portaria 465/2019; e Portaria 50/2022.

A flexibilização dos requisitos definidos em Portaria e o início da vigência estão resumidos na Tabela 2, reprodução de informação encaminhada pelo MME por meio da Nota

Informativa 32/2023/SAER/SE (peça 38), em resposta ao Ofício 75/2023-TCU/AudEletrica (peça 22).

Tabela 2 - Requisitos para migração por início de vigência (Fonte: MME, peça 38, p. 2-3)

Critério de liberação de consumidores

Início da vigência

Dispositivo do ordenamento jurídico

Todos: Carga ≥ 3.000 kW

1º /1/2019.

§ 2º-A do art. 15 da Lei 9.074/1995, republicada, com redação dada pela Lei 13.360/2016.

Carga ≥ 2.500 kW.

1ª/7/2019.

§ 1º do art. 1º da Portaria MME 514/2018.

Carga ≥ 2.000 kW.

1º/1/2020.

§ 2º do art. 1º da Portaria MME 514/2018.

Carga ≥ 1.500 kW.

1º/1/2021.

§ 3º do art. 1º da Portaria MME 514/2018, incluído pela Portaria MME 465/2019.

Carga ≥ 1.000 kW

1º/1/2022.

§ 4º do art. 1º da Portaria MME 514/2018, incluído pela Portaria MME 465/2019.

Carga ≥ 500 kW.

1º/1/2023.

§ 5º do art. 1º da Portaria MME 514/2018, incluído pela Portaria MME 465/2019.

Carga < 500 kW e Tensão ≥ 2,3 kV (Grupo

A), desde que representados por agente varejista na CCEE.

1º/1/2024

§§ 1º e 2º do art. 1º da Portaria MME 50/2022.

Destaca-se o fato de que as Portarias MME 514/2018 e 465/2019 não ampliavam de fato os limites de acesso ao mercado livre, mas apenas retiravam a obrigatoriedade de certas faixas de consumidores comprarem sua energia de fontes incentivadas, na forma da Lei 9.648/1998. Assim, seu objetivo primário era o de acabar com a reserva de mercado das fontes incentivadas, e não uma abertura em sentido estrito do mercado livre. De maneira diversa, a Portaria MME 50/2022, amplia, de fato, o universo de consumidores que podem migrar do ACR para o ACL.

Ao exercer o poder legal de flexibilizar os requisitos, o Poder Concedente deve indicar a oportunidade e a conveniência das medidas, seguindo também o princípio da motivação, que rege a Administração Pública, nos termos dos arts. 2º e 50 da Lei 9.784/1999, sob o risco de a abertura do mercado de energia elétrica se tornar um fim em si mesmo, desvinculado com as políticas públicas da área de energia elétrica.

Nessa toada, no início das discussões sobre a abertura de mercado, o MME apresentou argumento de que, se bem estruturado e implantado, o mercado livre seria uma oportunidade para reduzir gastos com energia elétrica uma vez que permite maior flexibilidade e gestão de riscos; o que aumentaria a eficiência econômica no setor elétrico e a produtividade das empresas, além de produzir um setor elétrico capaz de adaptar-se rapidamente à evolução tecnológica (NOTA TÉCNICA Nº 4/2016-AEREG/SE-MME, peça 56, p. 3).

Por outro lado, no mesmo documento, versa o Ministério que (peça 56, p. 3):

(...) deve ser ressaltado que a liberdade de escolha do fornecedor de energia elétrica não garante

por si só a redução de preços ao consumidor final. Trata-se de uma relação indireta: a liberdade de escolha aumenta a eficiência econômica por possibilitar melhor gestão de preferências e riscos que, por meio de um processo concorrencial pode resultar em menores preços de energia elétrica.

Ainda, apresenta que 'para que a liberdade do consumidor escolher o fornecedor com o qual firmará contrato de fornecimento gere de fato menores preços de energia elétrica é de suma importância discutir medidas capazes de garantir que o mercado livre funcione de forma eficiente, não artificial. Por isso, é relevante determinar o conjunto de condições necessárias para sua expansão, as quais devem estar alinhadas aos princípios da transparência, isonomia, livre iniciativa e da livre concorrência. Nesse processo, por exemplo, é preciso identificar e reconhecer as imperfeições existentes no funcionamento atual do mercado livre, tais como aquelas causadas por descontos tarifários (subsídios) e reservas de mercado'.

Pelo exposto nesse e em outros documentos e estudos produzidos no âmbito dos processos que culminaram nas portarias de flexibilização da migração, depreende-se que a opção por abrir o mercado de energia tem como objetivos: o empoderamento dos consumidores, o aumento da eficiência do mercado, por meio da competição, e a redução dos custos de energia.

Conclui-se também que a consecução desses objetivos está condicionada ao equacionamento dos riscos e à tomada de medidas acessórias que auxiliem a viabilização de um mercado livre mais justo, equânime e eficiente.

Por esses motivos, salutar o acompanhamento e a avaliação, por meio do estabelecimento de objetivos claros, métricas, indicadores, estudos, análises e outras ferramentas, dos impactos das medidas adotadas e se estas estão indo ao encontro dos objetivos pretendidos no nascimento da política.

O monitoramento e a avaliação de resultados é uma das diretrizes da governança pública previstas no artigo 4º do Decreto 9.203/2017:

III - monitorar o desempenho e avaliar a concepção, a implementação e os resultados das políticas e das ações prioritárias para assegurar que as diretrizes estratégicas sejam observadas;

A avaliação de resultados é também forma de conceder transparência e de prestar contas à sociedade, satisfazendo outras duas diretrizes elencadas no Decreto. Ademais, o normativo apresenta a definição de valor público:

Produtos e resultados gerados, preservados ou entregues pelas atividades de uma organização que representem respostas efetivas e úteis às necessidades ou às demandas de interesse público e modifiquem aspectos do conjunto da sociedade ou de alguns grupos específicos reconhecidos como destinatários legítimos de bens e serviços públicos.

O valor público gerado pelo processo de abertura de mercado só pode ser efetivamente verificado em avaliações in-itinere (concomitantemente) ou ex-post (em momento posterior).

O Referencial de Controle de Políticas Públicas do TCU elenca como boas práticas de avaliação de políticas públicas:

a) avaliar a relevância e a utilidade da política pública, ou seja, verificar se os objetivos e as ações governamentais respondem às necessidades dos beneficiários (diretos e indiretos); ao contexto político, econômico, social e ambiental nacional e internacional; bem como se essa resposta continuará a ocorrer se as circunstâncias mudarem;

b) avaliar a coerência da ação governamental, isto é, identificar possíveis fragmentações, duplicidades, sobreposições e lacunas no conjunto de ações governamentais e avaliar a compatibilidade da política com outras intervenções em curso;

c) avaliar a eficácia e efetividade da política, ou seja, aferir se os objetivos de médio e longo prazo da intervenção foram alcançados e se os resultados esperados da ação governamental foram produzidos;

d) avaliar os impactos da política, isto é, verificar se as intervenções públicas produziram efeitos

(positivos ou negativos) significativos, intencionais ou não;

e) avaliar a sustentabilidade da política, ou seja, estimar em que medida os benefícios da política continuarão a existir.

Contrariando as boas práticas, na condução da política de abertura de mercado e na edição das portarias de flexibilização, não se identificou a existência de avaliações de eficácia e efetividade da política (das medidas). Também não houve avaliação posterior de impactos e nem avaliação referente à sustentabilidade. Ademais, não há menção à construção de indicadores e métricas para subsidiar as avaliações.

Outro ponto de destaque que elucida a necessidade de avaliação ex-post de resultados e impactos está nos próprios estudos que embasaram a edição das portarias. O MME subsidiou-se em estudos da Aneel (peças 57 e 58) para fundamentar e editar os primeiros dois normativos. Os estudos da Agência apresentaram os potenciais impactos das flexibilizações. Foram expostas informações acerca do potencial de migração ao ACL e os potenciais efeitos sobre os consumidores que permanecessem no ACR.

Em relação aos impactos ao ACR, a Agência destacou a percepção de aumento do custo unitário referente ao risco hidrológico, o aumento de energia sobrecontratada pelas distribuidoras e do risco financeiro associado. Foram simulados diferentes cenários com variação de níveis de Generation Scaling Factor - GSF e Preço de Liquidação das Diferenças - PLD.

No exposto pela Agência, em um dos cenários de PLD e de GSF, o mercado regulado poderia ter um resultado negativo da ordem de R$ 2,8 bilhões, conjugados os efeitos associados à sobrecontratação e ao risco hidrológico. Esse valor seria arcado pelos consumidores cativos, que com o aumento das migrações estariam em menor número para dividir a conta.

Figura 7 - Potenciais efeitos financeiros para o mercado cativo decorrentes da migração para o ACL. Fonte: Ofício 347/2019-DIR/ANEEL (peça 58, p. 6).

Tais dados indicam que os potenciais efeitos negativos sobre o mercado regulado de energia poderiam ser de ordem considerável.

Ponto também importante sobre os potenciais efeitos da abertura é o possível descumprimento do §5º do art. 15 da Lei 9.047/1995, que dispõe que: 'o exercício da opção pelo consumidor não poderá resultar em aumento tarifário para os consumidores remanescentes da concessionária de serviços públicos de energia elétrica que haja perdido mercado'.

Sem adentrar profundamente na análise do dispositivo, cabe mencionar que a verificação do seu cumprimento ou descumprimento no contexto da abertura do mercado só pode ser avaliada com análises subsequentes à adoção das medidas das portarias.

Conforme dito anteriormente, as análises da Aneel, ao esclarecer os efeitos potenciais, são exemplos ilustrativos da importância de uma avaliação de impactos prévia e a posteriori, de forma a ponderar os reais efeitos ocorridos sobre o público direto, quais sejam os migrantes ao ambiente livre, e sobre o público indireto, os remanescentes do ACR.

Esta equipe de auditoria, por meio do Ofício 75/2023-TCU/AudEletrica (peça 22), solicitou ao MME que apresentasse elementos sobre: (i) formas de avaliação da política; (ii) indicadores definidos pelo MME para medir a efetividade e impacto do processo de abertura do mercado; e (iii) a indicação quanto à existência de metas definidas para a próxima fase da abertura em 2024.

Em resposta (peça 38), o Ministério restringiu-se a explicitar que a abertura de mercado se constitui de uma paulatina derrubada de barreiras de acesso ao mercado livre, cujas metas se constituem do próprio escalonamento de abertura e seu cronograma, de que trataram as Portarias 514/2018, 465/2019 e 50/2022. Em outros termos, o objetivo é dar liberdade de escolha aos consumidores atualmente cativos, cuja efetividade e impacto real dependerão do interesse dos consumidores em exercer a opção de portabilidade da conta de energia.

Na resposta não foram mencionados indicadores ou qualquer forma de avaliação de resultados e impactos da política. Além disso, o Ministério traz um objetivo para política diferente daquele que pode ser verificado na Nota Técnica 4/2016-AEREG/SE-MME (peça 56).

Da forma colocada, a política de abertura de mercado seria um fim em si mesmo, e não uma forma de obtenção de um mercado de energia elétrica mais eficiente e equânime.

Em outro item, ao ser perguntado dos benefícios esperados pelas medidas, expôs que os benefícios esperados da abertura de mercado são a eliminação de barreiras e a promoção de liberdade de escolha para os consumidores. Novamente, o Ministério se restringe aos efeitos imediatos da abertura de mercado, sem tecer comentários sobre os impactos na eficiência de mercado e em custos de energia nos ambientes de contratação.

Cabe também destacar que a falta de objetivos e metas específicos para a próxima fase de expansão do mercado livre, promovida pela Portaria MME 50/2022, dificulta ainda mais uma avaliação posterior de resultados.

Destaca-se a decisão do Comitê Permanente de Avaliação de Impacto Regulatório - CPAIR, que dispensou a realização de Análise de Impacto Regulatório (AIR) no processo que culminou na Portaria MME 50/2022 e indicou o normativo para compor a agenda de Análise de Resultado Regulatório - ARR do Ministério de Minas e Energia para o período de 2023 a 2026 (peça 59).

Primeiramente, a proposta de ARR não justifica a dispensa de AIR. Os dois instrumentos possuem objetivos e dinâmicas diferentes. A AIR serve para prever possíveis efeitos e mitigar os que possam ser considerados prejudiciais. Já a ARR serve para corrigir rumos e propor melhorias, após transcorrido determinado prazo.

Apesar de a realização de análise de resultado regulatório ser algo positivo no contexto apresentado, não foram mostrados elementos de como será realizada a ARR e o dilatado período da agenda (2023-2026) pode representar um risco de se ter uma avaliação intempestiva, ainda mais se considerada a possibilidade de lei vir a abrir o mercado para os demais consumidores - fato discutido no âmbito do PL 414/2021 e anteriores.

Essa ausência de sistemática de avaliação de resultados durante o processo tem potencial de resultar em diversos efeitos negativos.

O primeiro e mais importante desses efeitos é a falta de clareza em relação a se as medidas e ações adotadas estão contribuindo para a consecução dos objetivos pretendidos. A avaliação de resultados poderia responder questões como: 'os custos de energia estão menores?'; 'o consumidor se sente mais empoderado?'; e 'o mercado de energia elétrica está mais eficiente?'.

Além disso, é absolutamente necessária a verificação dos potenciais efeitos adversos resultantes do aumento das migrações para ACL sobre o ambiente regulado de contratação. Tais impactos potenciais estão inclusive documentados nos processos que culminaram na edição das portarias e são de amplo conhecimento dos agentes responsáveis. Importa ressaltar que no ACR estão contratos de compra de energia de longo prazo, com preços muitas vezes superiores aos disponíveis no mercado, frutos de anos de políticas públicas que permitiram a expansão da capacidade de geração e transmissão, o desenvolvimento de fontes de energia, bem como a consecução de resultados como a universalização do acesso à energia elétrica e a segurança energética.

Ademais, sistemática de monitoramento e avaliação concomitantes à implementação das medidas tem o potencial de mitigar riscos que não eram conhecidos na fase de elaboração e garantir que os agentes responsáveis pela mitigação dos riscos já levantados estão agindo adequada e tempestivamente.

A avaliação traz o poder de retroalimentar o processo, permitindo se tomar lições de fases anteriores da abertura de modo a ajustar a condução da política pública.

Por fim, a divulgação desses resultados resulta no cumprimento do princípio constitucional da publicidade (CF, art. 37), concedendo mais transparência e segurança aos agentes privados do mercado e aos consumidores em geral.

Ante o exposto, sugere-se recomendar ao Ministério de Minas e Energia, nos termos do inciso III do art. 250 do Regimento Interno do TCU, que, em conformidade com as atribuições normativas correlatas à avaliação de resultados previstas para seus órgãos singulares no Decreto 9.675/2019, e de forma a conformar-se com os princípios e diretrizes da governança pública explicitados no Decreto 9.203/2017, apresente:

i) os objetivos da política de abertura gradual do mercado de energia elétrica, bem como avaliação de resultados e dos impactos causados pelas medidas presentes nas Portarias MME 514/2018 e 465/2019, em especial quanto a: (i) redução dos custos de energia, explicitando premissas e metodologia; e (ii) impactos financeiros causados no Ambiente de Contratação Regulada decorrentes das referidas medidas;

ii) metodologia de avaliação de resultados para a abertura a ser promovida pela Portaria MME 50/2022 e próximas fases, contendo: metas e indicadores, responsabilidades, premissas e cronograma avaliativo.

III.2. A Portaria Normativa 50/GM/MME/2022 e o Estágio Atual de Abertura do Mercado

Este tópico busca descrever e analisar os procedimentos e atos preparatórios à edição da Portaria Normativa 50/GM/MME/2022, em relação às dimensões da legalidade, razoabilidade, transparência e motivação dos atos (Questão II de auditoria). Também aborda as análises prévias de impacto, identificação de aspectos de risco e medidas mitigadoras, bem como eventuais ações de adequação normativas para a abertura do mercado.

Nesse sentido, foram executados procedimentos de análise em documentos técnicos e pareceres do Ministério de Minas e Energia que serviram como base para a avaliação de aspectos jurídicos da corrente fase de abertura de mercado, bem como do tratamento dado aos elementos dos estudos e estimativas da CCEE e da Aneel que fundamentaram a decisão que culminou na referida portaria.

Outros procedimentos buscaram identificar em que medida os riscos e suas respectivas medidas mitigadoras, identificadas e discutidas em fases anteriores do processo de abertura do mercado, receberam, ao longo da fase atual do processo, tratamento coerente e adequado em relação ao grau de importância conferido a estes riscos em momentos anteriores. Outro aspecto que mereceu destaque em relação a essa questão de auditoria foi a fundamentação para a decisão de dispensar a realização de Análise de Impacto Regulatório - AIR, assunto já abordado no item 98 do Relatório.

De maneira geral, a aplicação de procedimentos de auditoria permitiu identificar que o processo de abertura de mercado de energia elétrica, cujo marco de flexibilização para adesão de consumidores do Grupo A (<500 kW) ao ACL ocorre a partir de janeiro de 2024, por força da Portaria Normativa 50/2022-MME, do ponto de vista formal, possui embasamento jurídico e tem se desdobrado de acordo com os princípios da razoabilidade e da transparência, porém traz em seu bojo riscos associados à alocação de custos no ACR.

Os principais temas de repercussão jurídica foram enfrentados nos Pareceres 125, 224,

282 e 293/2022/CONJUR-MME/CGU/AGU (peça 60), quais sejam: a legalidade e legitimidade do Ministério de Minas e Energia em autorizar a diminuição dos limites de carga para ingresso no mercado livre por meio de portaria, por força do disposto no art. 15, §3º, da Lei 9.074/1995; sobre a proposta de submeter o assunto a Consulta Pública para colher considerações da sociedade, nos termos do art. 31 da Lei 9.784/1999 e art. 18 do Decreto 9.830/2019; bem como a análise da alegação de que a proposta de portaria estaria 'violando o direito de migração de consumidores por meio da comunhão de fato e de direito, conforme disposto no § 5° do art. 26 da Lei n°9.427, de 26 de dezembro de 1996', alegação esta que foi afastada pela CONJUR do MME.

No quesito transparência e participação social, o exame dos atos prévios à edição da Portaria MME 50/2022, permite identificar que o setor elétrico teve oportunidade de contribuir para o aperfeiçoamento desta etapa do processo de abertura, primeiramente no âmbito da Tomada de Subsídios Aneel 10/2021 e posteriormente por meio da Consulta Pública MME 131/2022.

Cabe apontar, no entanto, que foram identificadas inconsistências e oportunidades de melhoria em relação ao tratamento de determinados riscos trazidos à consideração do Ministério, em especial foram identificadas fragilidades no processo de análise técnica que resultou na Portaria MME 50/2022 e na fundamentação de dispensa de Avaliação de Impacto Regulatório (AIR).

Achado 2 - Fragilidades no processo de análise técnica que resultou na Portaria MME 50/2022

e na fundamentação de dispensa de Avaliação de Impacto Regulatório (AIR)

Foi identificado que a análise técnica que resultou na abertura de mercado definida pela Portaria Normativa MME 50/2022 possui fragilidades como a existência de lacunas na avaliação de riscos e não tratamento de todos os elementos trazidos à consideração do Ministério no processo de tomada de decisão; além disso, a dispensa de realização de Avaliação de Impacto Regulatório (AIR) não considerou em sua fundamentação a possibilidade de impactos e custos regulatórios decorrentes das mudanças em processos de agregação de medição, serviços de desligamento/corte de fornecimento, envio e troca de informações para sistema de gestão de informações da CCEE e outros, que não foram adequadamente dimensionados.

Situação encontrada

O processo SEI 48340.003386/2021-10 do MME, que trata da nova fase de abertura do mercado de energia para o Grupo A com carga inferior a 500 kW, tem início com o recebimento da Carta CT-CCEE05492, de 29/9/2021, contendo a 'Proposta Conceitual para Abertura do Mercado', estudo elaborado pela CCEE para subsidiar as discussões acerca das novas etapas de liberalização do mercado.

Conforme previsto no §6º do art. 1º da Portaria MME 514/2018, com redação alterada pela Portaria MME 465/2019, a Aneel e a CCEE foram demandadas a apresentarem ao Ministério, até 31/1/2022, estudos sobre as medidas regulatórias necessárias para permitir a abertura do mercado livre para os consumidores com carga inferior a 500 kW; além disso, estes estudos deveriam incluir a figura do 'comercializador regulado' e proposta de cronograma de abertura iniciando em 1º/1/2024.

Dessa forma, além da 'Proposta Conceitual para Abertura do Mercado', foram ainda encaminhados os seguintes documentos: a) Nota Técnica 10/2022 - SRM/ANEEL, de 31/1/2022; e b) Carta CT-CCEE02898/2022, contendo estudo complementar da CCEE denominado 'Análise de cenários e cronograma para a Abertura do Mercado' (peça 61).

Nos tópicos a seguir, serão apresentados os principais elementos desses estudos, que foram a base para o pronunciamento do MME no sentido de permitir a migração para o mercado livre dos consumidores do Grupo A com demanda inferior a 500 kW a partir de janeiro/2024.

Análise

Proposta Conceitual para Abertura de Mercado (Carta CT- CCEE05492/2021, peça 52)

No âmbito da Proposta Conceitual para Abertura de Mercado, elaborada pela CCEE, estão definidos como premissas alguns conceitos relevantes, como a busca pelas boas práticas e experiências internacionais, sempre que possível; a construção de bases sólidas para o aperfeiçoamento e a evolução do modelo de abertura de mercado; e permitir uma transição sustentável, contínua e previsível para um modelo de mercado liberalizado.

Defende a CCEE que a Proposta Conceitual tem o objetivo de contribuir para o desenvolvimento do mercado de energia no Brasil, por meio de uma abertura 'sustentável, contínua e previsível', que se dê de forma organizada e gradual e com avaliação dos impactos da abertura sobre o setor (peça 52, p. 4):

Como sustentável entende-se também organizada e gradual, na medida da necessidade, observando os efeitos da abertura sobre a organização atual do setor, promovendo aprimoramentos necessários para o respeito aos contratos e a saúde econômico-financeira dos agentes, incluindo os próprios consumidores. (grifei)

Na Proposta da CCEE, foram considerados de tratamento prioritário para consolidar o processo de ampliação da abertura de mercado: i) tratamento da medição; ii) Supridor de Última Instância; iii) comercialização regulada; iv) contratos legados e sobrecontratação; v) comercialização varejista; vi) modelo de faturamento; e vii) efeito da abertura do mercado de baixa tensão (BT) sobre a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), devido aos descontos nas Tarifas de Uso de Sistemas. Para cada um destes temas, o estudo da CCEE elenca sua proposta de estruturação que entende relevante para garantir sustentação à ampliação do mercado livre.

Em relação ao tema do tratamento da medição, a CCEE propõe a simplificação dos requisitos de medição e a prescindibilidade de representação individual perante a Câmara para que os consumidores menores do grupo da alta tensão (AT) não tenham uma barreira de acesso ao mercado livre. Há que se compatibilizar a necessidade de disponibilização de dados suficientes para a contabilização no ACL com a revisão dos requisitos dos sistemas de medição para evitar a imposição de investimentos e custos desnecessários aos potenciais consumidores livres (peça 52, p. 22):

(...) os requisitos do sistema de medição definidos para a alta tensão não são compatíveis com um cenário de abertura do mercado para consumidores cada vez menores, devido a custos e esforços envolvidos nas adequações, e que a representação individualizada de unidades consumidoras de pequeno porte na CCEE é desnecessária, podendo resultar em volume de dados que demandará altos custos de migração, manutenção e infraestruturas de processamento e de comunicação.

Em relação aos consumidores do Grupo A, a CCEE avalia que cerca de dois terços já se encontram no mercado livre, e, portanto, já possuem tecnologia de medição compatível com as especificidades do ACL (tarifa binômia, coleta de dados e medição em base horária). A abertura para o restante do Grupo A, portanto, na visão da CCEE não apresenta desafios significativos nesse quesito.

Antevendo etapas futuras da abertura de mercado para o Grupo B, os desafios serão consideravelmente maiores. Enquanto o Grupo A representa aproximadamente 0,2% das unidades consumidoras do País, e 45% do consumo de energia do SIN, estima-se que o Grupo B abarque quase 85 milhões de unidades. A grande maioria destes consumidores possuem medidores eletromecânicos ou eletrônicos mais simples, que não possuem características compatíveis com os requisitos do mercado livre. Ainda que muitas distribuidoras de energia tenham avançado em programas de modernização dos medidores da baixa tensão, estas iniciativas são insuficientes para alterar o cenário no Grupo B.

De acordo com a CCEE, a discussão acerca da substituição massiva de medidores da baixa tensão foi abordada por ocasião da Consulta Pública Aneel 2/2018 e Audiência Pública Aneel 59/2018, porém os estudos apresentados apontaram para a inviabilidade econômica da substituição total do parque de medição. No entanto, a Câmara aponta para o caminho do desenvolvimento de metodologias para tratamento dos dados que permitam atender os requisitos de contabilização da energia no mercado livre, de maneira que os montantes de consumo sejam 'distribuídos' pelas horas do mês, a partir de parâmetros do regulador e de acordo com o perfil daquele grupo consumidor na distribuidora local. Assim, de acordo com a CCEE, a troca de medidores na baixa tensão não seria condição necessária para a abertura de mercado.

Outro ponto da proposta conceitual da CCEE é que, para simplificar o mercado e permitir a acessibilidade em maior escala para o ACL, propõe-se que unidades consumidoras com demanda contratada abaixo de 500 kW não mais sejam representadas individualmente na Câmara, e sim por um comercializador varejista. A presença do comercializador varejista permite que o consumidor não tenha o ônus de habilitação técnica e comercial junto à CCEE, administração de um volume significativo de informações, responsabilidades financeiras (garantias), além do investimento em infraestrutura de medição para atender às exigências do mercado livre, independentemente do porte do cliente. Neste caso, as distribuidoras atuariam como o agente de agregação de medição dos consumidores representados por varejistas.

No contexto da comercialização varejista e do acesso ampliado de novos consumidores de menor porte no mercado livre, o comercializador varejista será peça chave para oportunizar que consumidores usufruam deste ambiente sem a necessidade de deter conhecimento aprofundado sobre funcionamento e operações no mercado de energia. Nesse ambiente de comercialização livre, ainda que se ressalte o poder de escolha do consumidor (de fornecedores e produtos específicos de energia), assume importância crítica o tratamento dado à continuidade do fornecimento de energia ao consumidor que porventura ficar sem comercializador varejista por desligamentos ou outros, ou que demorem a optar por um fornecedor, de modo a proteger os demais consumidores e as distribuidoras.

Nesses casos, a figura do Supridor de Última Instância (SUI) é crucial para garantir provisoriamente a continuidade do fornecimento sem gerar impactos para os demais agentes do mercado. Conforme ressalta a CCEE em sua 'Proposta Conceitual', o SUI deve ter caráter emergencial e transitório e pode ter seu papel assumido pelas distribuidoras locais, por questão de segurança e conhecimento para executar a atividade, devendo ter garantia de equilíbrio econômicofinanceiro da atividade.

Outro ponto de atenção da proposta da CCEE é o tratamento dos chamados contratos legados, do ambiente de contratação regulado. Com a abertura total do mercado, o aumento da migração de consumidores para o ACL pode afetar diretamente o balanço do portfólio de contratos das distribuidoras, gerando sobrecontratações que podem onerar os demais consumidores e impactar os resultados das empresas.

A proposta da CCEE é basicamente atuar nas iniciativas citadas a seguir, de forma a criar condições para que, com a transferência gradativa da demanda do ACR para o ACL, ocorra um influxo dos contratos no mesmo sentido. De acordo com a Câmara, a utilização desses mecanismos poderia promover o equilíbrio da contratação das distribuidoras e minimizar o problema da sobrecontratação (peça 52, p. 30-31):

a. Evitar novos legados: de modo que a base de contratos para o atendimento ao mercado cativo, que compõe o portifólio das distribuidoras não aumente durante o período de transição que precede ou acompanha a abertura do mercado. Nesse sentido, a alteração da Lei 10.848/2004 de forma a reduzir os prazos dos contratos do ACR faz-se importante para permitir novas contratações sem gerar problemas de sobrecontratação no futuro;

b. Separação de lastro e energia: de modo que os custos da adequação de longo prazo sejam alocados a todos os usuários. Além de evitar a compra de energia não necessária para ACR, a separação do produto lastro do produto energia, que corresponde somente ao hedge contra incertezas no PLD, torna os contratos do ACR mais compatíveis com os produtos do mercado livre facilitando a transferência de excedentes entre os ambientes;

c. Aprimorar os vasos comunicantes entre os ambientes de comercialização: aprimorar os mecanismos de venda de energia do ACR para o ACL, tornando-os mais dinâmicos e diminuindo os riscos para as distribuidoras;

d. Gestão ativa do portifólio das distribuidoras: criar mais possibilidades e oportunidades de negociações, inclusive bilaterais, e instituir mecanismos de descontratação do ACR, conforme disposto na Lei nº 14.120/2021; e

e. Rever contratos legados: promover a descotização dos contratos provenientes das geradoras da Eletrobrás, conforme disposto na Lei nº 14.182, de 12 de julho de 2021, revisar o modelo de contratação de Itaipu, dentre outras ações.

A CCEE chama a atenção para o fato de que os esforços citados podem mitigar os efeitos de uma sobrecontratação e desequilíbrios no portfólio das distribuidoras em decorrência da abertura do mercado, mas há riscos de que essas medidas ainda sejam insuficientes e permaneçam 'pressões residuais'. Nesse sentido, aponta alternativa existente no PL 414/2021, que contém dispositivo que considera excedente involuntário aquela sobra de energia decorrente da migração de consumidores do ACR para o ACL, e aloca como encargo a todos os consumidores, na proporção do seu consumo.

A Câmara considera, no entanto, desejável que o encargo seja o 'último recurso' para equilíbrio dessa disfuncionalidade, após esgotados os aperfeiçoamentos possíveis na gestão de contratos das distribuidoras.

Por último, a CCEE aponta ainda a necessidade de aprimoramentos na regulamentação da comercialização varejista, com foco no registro das relações entre varejistas e consumidores representados, aperfeiçoamentos na regulamentação de notificações e prazos relativos à inadimplência dos consumidores representados.

Análise de Cenários e Cronograma para Abertura de Mercado (CT-CCEE02898/2022, peça 61)

O estudo complementar da CCEE, encaminhado pela CT-CCEE02898/2022 e denominado 'Análise de Cenários e Cronograma para a Abertura de Mercado' constitui nota técnica que agrega uma projeção de cenários de migrações de consumidores do mercado regulado para o ACL, baseado em premissas de aumento de carga do setor elétrico e composição dos contratos das distribuidoras ao longo do tempo, para analisar a possibilidade de abertura de mercado para novas faixas, e assim adequar o 'calendário' de liberalização às melhores condições, e minimizar o risco de sobrecontratação das distribuidoras.

O estudo sobre os cenários para abertura de mercado parte de algumas premissas importantes; em relação ao consumo, a projeção decorre da carga global do SIN estimada no PDE

2031. Foi adotado o agrupamento do consumo do ACR sob uma hipotética 'Distribuidora Brasil', que agrega o conjunto dos consumidores das distribuidoras do mercado cativo, deduzida a perspectiva de crescimento da MMGD, de acordo com cenário constante do PDE 2031, e estimou-se, com base na segmentação das classes de consumidores do Grupo A e Grupo B aqueles com menor probabilidade de migrar, como poder público, serviço público e iluminação pública.

De acordo com os dados da Aneel/CCEE, o segmento do Grupo A com demanda inferior a 500 kW corresponde a 5,9% da carga do SIN, ou 3,89 GW (Tabela 3). Destes, conforme as premissas da CCEE, cerca de 3,8 GW teriam propensão a migrar para o mercado livre. Deve ser considerado ainda a existência de parcela do Grupo A > 500 kW que ainda não teria migrado, correspondendo a 8% da carga do SIN (5,33 GW), dos quais 6,5% (4,28 GW) igualmente teriam maior inclinação a migrarem para o ACL.

Tabela 3 - Segmentação dos Grupos A e B (fonte: peça 61, p. 10)

Ambiente

Grupos

Participação SIN

GW

ACL

Consumidores livres e especiais

34,5%

22,84

ACR

Grupo A > 500 kW

8,0%

5,33

Comercial

2,6%

1,73

Industrial

1,8%

1,16

Rural

0,6%

0,40

Serviço Público

1,7%

1,10

Consumo Próprio

0,0%

0,02

Iluminação Pública

0,0%

0,03

Poder Público

1,3%

0,88

Grupo A < 500 kW

5,9%

3,89

Comercial

2,9%

1,94

Industrial

2,0%

1,30

Rural

0,7%

0,44

Serviço Público

0,1%

0,06

Consumo Próprio

0,0%

0,00

Iluminação Pública

0,0%

0,01

Poder Público

0,2%

0,14

Grupo B não residencial e não rural

10,4%

6,85

Comercial

5,8%

3,84

Industrial

0,7%

0,45

Serviço Público

0,4%

0,26

Consumo Próprio

0,1%

0,03

Iluminação Pública

2,7%

1,78

Poder Público

0,7%

0,49

Grupo B residencial, rural e perdas na distribuição

41,3%

27,34

Residenciais

24,4%

16,18

Rural

2,8%

1,82

Perdas técnicas

7,1%

4,70

Perdas não técnicas

7,0%

4,64

Total

100%

66.26

Em relação ao portfólio da 'Distribuidora Brasil', foram consideradas as seguintes premissas: avaliação do impacto no conjunto de contratos firmados, sem segregar efeitos individuais por concessionária; desconsideração de novas contratações em leilões (energia nova/existente) ou

'novos legados' impostos por legislação; não foram avaliados os efeitos redutores de sobrecontratação por meio do uso de Mecanismos de Venda de Excedentes (MVE) ou mecanismos de descontratação; permanência do modelo de contratação das cotas da energia de Itaipu e Angra III, considerada no portfólio a partir de 2027; e descotização das usinas da Eletrobras, na proporção de 20% ao ano a partir de 2023.

No cenário representado na Figura 8, foram analisados os efeitos na sobrecontratação das distribuidoras considerando uma trajetória de migrações linear que leva em conta uma inércia do processo de adesões ao mercado livre. As projeções de carga do ACR foram sobrepostas em 'carga base', carga 'menos grupo A > 500 kW', carga 'menos grupo A < 500 kW', e carga 'menos grupo B não-resid/rural'. O cenário leva em conta também as datas de liberalização dos respectivos grupos para avaliar a incidência de situação de sobrecontratação.

Figura 8 - Projeções de carga e cenários de sobrecontratação da 'Distribuidora Brasil' (Fonte: CCEE, peça 61, p. 23).

Na hipótese mais conservadora, segundo a CCEE, que considera um 'risco zero' de sobrecontratação, e que parte da premissa teórica de migração imediata do grupo habilitado (sem inércia), estima-se que a faixa do Grupo A < 500 kW só poderia migrar a partir de setembro/2027. Este cenário, no entanto, não é adotado como base pela CCEE, em parte por sua baixa probabilidade teórica, e em parte porque 'esse cenário implicaria necessariamente subcontratações'. Por isso, a Câmara entende que, para a velocidade de migração se manter contínua e gradativa, a abertura para a próxima faixa de consumidores deve ser realizada antes da data estimada de 'exaustão' da faixa anterior.

Assim, julga a CCEE, que as datas de abertura estabelecidas representam uma abertura equilibrada que permite a adequação gradativa do balanço energético do ACR, estabelecendo previsibilidade para uma contratação 'racional' de novos legados e minimizando tanto sobre quanto subcontratações no portfólio das distribuidoras.

Ainda assim, considerando o grau de incerteza da carga remanescente do ACR e da tendência de migração linear projetada, a CCEE calculou neste estudo qual o valor de uma hipotética sobrecontratação decorrente de uma migração imediata após a data da liberação do respectivo grupo. Este cálculo baseou-se na diferença entre o preço médio de compra das distribuidoras ('Pmix' da 'Distribuidora Brasil') e o preço de venda de longo prazo (marcação a mercado das sobras das distribuidoras), o que resultou num montante de sobrecontratação máxima de R$ 15,47 bilhões em oito anos. Como existem duas propostas legislativas diferentes em discussão no Congresso Nacional para tratar o custeio desse encargo de sobrecontratação (PL 414/2021 e PL 1.917/2015), esse valor pode variar entre R$ 2,95/MWh e R$ 4,25/MWh (rateado pelo consumo base de todos os consumidores ou excluindo os que já migraram para o ACL).

Assim, com base nas premissas de análise adotadas pela CCEE, o estudo apresenta a proposta de cronograma contida na Tabela 4 com sugestão de datas para abertura do mercado (Grupos A e B).

Tabela 4 - Cronograma de abertura proposto pela CCEE (Fonte: peça 61, p. 27.).

Em relação às medidas regulatórias e preparatórias necessárias para a abertura, a CCEE estabelece um cronograma encadeado de ações e medidas, a serem adotadas nos anos de 2022 a 2024, de forma a criar as condições necessárias para uma abertura sustentável, organizada e gradual.

Figura 9 - Ações para viabilização da abertura do mercado (Fonte: CCEE, peça 61, p. 28). 147. Dentre o rol de medidas, destacam-se a regulação da agregação de medição (ao longo de 2022), o aperfeiçoamento da gestão contratual das distribuidoras (2022 a início de 2024); tratamento dos contratos existentes (até 1º sem/2023); regulação do encargo de sobrecontratação (até final de 2023); e regulação do SUI (até final de 2023), entre outros.

O estudo da CCEE alerta, no entanto, que o eventual atraso na adoção das medidas normativas e regulatórias indicadas pode influenciar a efetividade do cronograma proposto; além disso, na eventualidade de novas contratações das distribuidoras (novos legados) o quadro retratado de sobrecontratação seria agravado. A CCEE aponta ainda que a abertura do Grupo B tem como prérequisito alterações legais que afastem o risco de elevação significativa da CDE como consequência dos descontos de uso do fio (TUSD e TUST). Outra indicação da Câmara é que sejam tomadas medidas visando a aprovação de alguma das propostas de legislação em tramitação no Congresso para viabilizar o chamado 'encargo de sobrecontratação', visando principalmente a abertura da baixa tensão. Por último, aponta como importante para a operacionalização da abertura de mercado realizar aprimoramentos regulatórios, como a implementação da agregação de medição e revisão do comercializador varejista.

Tomada de Subsídios Aneel 10/2021 (NT 10/2022-SRM/Aneel)

A Nota Técnica 10/2022 - SRM/ANEEL (peça 54) faz a consolidação da apreciação da Agência Reguladora em relação às medidas regulatórias necessárias para permitir a abertura de mercado, após fase de consulta a agentes do setor para sugestões por meio da Tomada de Subsídios Aneel 10/2021. A seguir, são sintetizados os principais pontos da Nota Técnica, que consolidou as contribuições acerca dos temas suscitados pelo Regulador na fase de coleta da Tomada de Subsídios.

A Aneel destaca a necessidade de que a abertura do mercado obedeça a um escalonamento, de forma a estar concatenada à redução dos contratos legados para reduzir o nível da sobrecontratação das distribuidoras. A Agência indica a necessidade de avaliar 'constantemente' os perfis de contratação das concessionárias, bem como o mercado com potencial de migração, com objetivo de minimizar o risco de sobrecontratação e o risco de aumento de tarifas.

Outro aspecto destacado pelo estudo da Aneel é a necessidade de aprimoramento dos mecanismos de gerenciamento de portfólio de contratos das distribuidoras, como o mecanismo de venda de excedentes (MVE) e o mecanismo de compensação de sobras e déficits (MCSD), além de regulamentação do mecanismo de descontratação previsto na Lei 14.120/2021. Mas a Agência aponta que, mesmo adotando uma perspectiva gradualista de abertura e aperfeiçoando os mecanismos de gerenciamento do portfólio das distribuidoras, 'é possível que os consumidores do ACR tenham que arcar com custos adicionais decorrentes do processo de migração' (peça 54, p. 13).

Nesse sentido, devido ao disposto no §5º do art. 15 da Lei 9.074/1995, a Aneel aborda uma das principais sugestões dos agentes na Tomada de Subsídios, que é a criação de uma 'regra de transição', que é o rateio por meio de encargo do custo da sobrecontratação, entre os consumidores remanescentes no ACR e aqueles que migrarem após abertura do mercado. Este encargo seria apurado após esgotadas todas as possibilidades de redução contratual por parte das concessionárias de distribuição, de forma que fosse assegurado que estas realizaram o 'máximo esforço' para reduzir a sobrecontratação com os meios legais e regulatórios disponíveis.

Ainda restam dúvidas, no entanto, em relação a quais grupos de consumidores devem pagar este encargo: se todos os consumidores do ACR e ACL; se apenas os consumidores remanescentes do regulado e os que migrarem após a abertura do mercado; ou somente os consumidores do ACL. Cabe destacar que para a Aneel, este custo recair somente sobre o ACL é a alternativa que faz menos sentido.

Outro aspecto enfatizado foi a necessidade de evitar o aumento dos contratos legados e a priorização da expansão via contratação de reserva de capacidade, modalidade esta contratada pelo ACR e ACL, o que aloca os custos da confiabilidade do sistema em ambos os ambientes e contribui para não gerar assimetrias. Também foi mencionada sugestão no sentido de reduzir os prazos dos contratos de energia nos leilões regulados.

Como sintetiza a Aneel, a conciliação do cronograma de abertura do mercado livre com a redução dos contratos legados reduz o risco de sobrecontratação das distribuidoras e, consequentemente, o impacto nas tarifas dos consumidores cativos.

Em relação ao Supridor de Última Instância, o estudo da Aneel abordou as diferentes possibilidades de desenvolvimento das atividades do SUI, com destaque para o entendimento aparentemente consensual entre os agentes de que este papel deva ser exercido pelas distribuidoras, pelo menos no primeiro momento, e de que este papel deva ser de atendimento temporário e esporádico para os consumidores cujo supridor escolhido não possa mais prestar o serviço.

Na discussão sobre o modelo de faturamento, foram abordadas as vantagens e desvantagens da adoção de uma fatura única (para os valores da energia e do serviço de 'fio') ou a manutenção do sistema atual no ACL (de duas faturas). A fatura única tem como vantagens controle maior da inadimplência, maior simplicidade para o consumidor, redução dos custos de cobrança; no caso do sistema de duas faturas, não se cria um problema de adequação entre sistemas das distribuidoras e comercializadoras, além de ser um processo já existente e, portanto, sem custos de transição. Nesse assunto, considerando as dificuldades para implementar o modelo de fatura única, a Aneel recomendou que seja utilizado o modelo atual de faturamento para os consumidores <500 kW, sem prejuízo de discussões futuras visando o aperfeiçoamento.

No tópico dos requisitos técnicos necessários para a migração para o ACL foi discutida a temática das adequações do sistema de medição. Nas palavras da Agência, 'o cerne da questão diz respeito à possibilidade de migração com a estrutura de medição atual ou aprimoramentos nessa estrutura fazem-se necessários. Nessa segunda hipótese, como deve ser a alocação dos custos' (peça 54, p. 32).

Após apresentar e discutir diversos arranjos possíveis de migração combinada com iniciativas de modernização ou substituição de equipamentos de medição, que permitam usufruir das vantagens proporcionadas pelos sistemas de medição inteligente, a Aneel alinha-se à proposta da CCEE, no sentido de que para o Grupo A não é necessária nenhuma adequação tecnológica significativa para migração ao ACL, e que mesmo para o caso da baixa tensão (Grupo B), a troca dos medidores atualmente utilizados não é uma condição imprescindível para viabilizar a abertura do mercado livre, sendo recomendável a discussão acerca de metodologias para tratamento dos dados a partir dos medidores atuais (peça 54, p. 36):

Assim, como medida regulatória necessária para permitir a abertura do mercado, devem ser estabelecidas as premissas para a migração de consumidores com a medição eletromecânica atual (por exemplo, definição da curva de carga do consumidor e procedimento para tratar o descasamento entre os dados de medição e o processamento da contabilização na CCEE). Requisitos técnicos mínimos para os medidores eletrônicos e a alocação do seu custo devem ser avaliados, mas não constituem impedimento para a abertura do mercado.

Os aperfeiçoamentos do modelo de comercialização varejista também foram objeto de avaliação e discussão dos agentes e da Aneel na Tomada de Subsídios, e as sugestões concentraramse em três tópicos principais: tratamento da inadimplência; segurança do mercado; e separação das atividades de atacado e varejo. Após avaliar as contribuições feitas, a Aneel concluiu que os temas devem ser aprofundados em sede de Consulta Pública, prevista na Agenda Regulatória da Aneel para o biênio 2022/2023.

Como resultado da Tomada de Subsídios, que sintetizou as contribuições e análises sobre diversos temas que impactariam no processo de abertura de mercado, foram elencados os temas que, na opinião da Aneel, necessitariam de aprimoramentos regulatórios (peça 54, p. 44):

· implementação de campanhas de esclarecimento e conscientização dos consumidores a respeito do processo de migração e atuação no ACL;

· indicação para que os fornecedores varejistas tenham um produto padrão divulgado na internet, de modo a permitir a simulação e comparação de produtos razoavelmente padronizados, em ambientes de confiança, que garantam uma escolha consciente dos custos, benefícios e riscos envolvidos;

· regulamentação contra abusos de poder de mercado e acesso à informação dos consumidores, no caso de grupos econômicos que possuam distribuidoras e agentes de comercialização no mercado livre;

· determinação para que os comercializadores de consumidores residenciais estabeleçam canais de atendimento acessíveis e atuem como disseminadores de informação, contribuindo para a capacitação dos consumidores à nova realidade;

· condições e requisitos (critérios, prazos, necessidade de estar adimplente e comunicar a decisão de saída para a distribuidora, por exemplo) para a migração dos consumidores regulados ao ambiente de comercialização livre;

· estabelecer prazos para atendimento e ligações de novos consumidores por parte das comercializadoras;

· forma de apresentação das faturas de energia elétrica aos consumidores com carga inferior a 500 kW, atendidos no ACL;

· procedimento para a migração de consumidores com a atual medição eletromecânica (definição da curva de carga do consumidor e procedimento para tratar o descasamento entre os dados de medição e o processamento da contabilização na CCEE);

· comercialização varejista;

· desligamento de integrantes da CCEE;

· suspensão do fornecimento de unidades consumidoras modeladas na CCEE;

· encerramento da representação de consumidores por gerador varejista ou por comercializador varejista;

· procedimento de corte de consumidores inadimplentes; e

· suprimento pela distribuidora de consumidores desligados de seu supridor no ACL por motivo de desligamento do supridor da CCEE.

Por último, pertinente ressaltar o alerta da Aneel, que apontou a dificuldade de estabelecer um cronograma com datas e prazos definidos para o processo de abertura de mercado, especialmente considerando a complexidade das discussões realizadas no âmbito setorial e refletidas na Nota Técnica. O órgão ressalta que, antes de definir um cronograma com datas específicas, é prudente definir o conjunto de ações prioritárias para viabilizar a abertura do mercado livre.

Nos tópicos a seguir, dedicados à análise do Ministério de Minas e Energia sobre os subsídios da Aneel e CCEE em relação à abertura do mercado, serão ainda abordados aspectos referentes ao tratamento dado aos elementos técnicos dos estudos da Aneel e CCEE.

Notas Técnicas MME 8, 16 e 27/2022/ASSEC

O primeiro pronunciamento técnico do MME no Processo SEI 48340.003386/2021-10 a dar tratamento aos subsídios da CCEE e Aneel foi a Nota Técnica 8/2022/ASSEC, de 4/5/2022 (peça 62). Neste documento, o MME destaca que uma abertura de mercado sustentável não prescinde da discussão de diversos temas previamente ao processo de flexibilização, tendo em vista a possibilidade de que um processo desordenado de abertura resulte em impactos negativos, como o aumento da sobrecontratação das distribuidoras e aumento de tarifas para os cativos (peça 62, p. 4):

(...) uma abertura desordenada pode trazer distorções na alocação de custos e riscos existentes entre os ambientes de contratação, como por exemplo, um aumento incontrolável da sobrecontratação das distribuidoras em consequência do aumento da migração de consumidores, levando a um impacto negativo nas tarifas daqueles que permanecerem cativos.

A Nota Técnica em questão faz uma apresentação dos principais pontos dos estudos da Aneel (NT 10/2022) e CCEE ('Proposta Conceitual' e 'Análise de Cenários para Abertura de Mercado'); como estes elementos já foram abordados nos tópicos anteriores, passa-se direto para a avaliação técnica do MME sobre alguns desses temas.

O Ministério afirma que 'a abertura do mercado é medida inevitável e imprescindível à modernização do setor elétrico brasileiro' e que é necessário o 'avanço na flexibilização de requisitos para a migração de consumidores para o mercado livre'. Por outro lado, reconhece que alguns temas ainda carecem de regulamentação, como o Supridor de Última Instância, a comercialização regulada, a definição de critérios de medição com regulamentação do tratamento de dados, por exemplo.

Por tudo o que já foi analisado e exposto, entende-se que a abertura de mercado é um caminho legítimo para a estruturação e desenvolvimento do mercado de comercialização de energia elétrica, em um contexto de liberalização deste mercado, e que está indicado pelo legislador e em atos do Poder Concedente com horizonte a ser alcançado.

No entanto, ao basear sua análise na premissa de 'medida inevitável e imprescindível à modernização do setor' cujo avanço é inexorável, perde-se de vista a dimensão de que a abertura de mercado é, antes de tudo, uma escolha de política pública, que implica uma análise de benefícios e também potenciais riscos ao setor elétrico. Assim, a avaliação da velocidade e da modelagem do processo de abertura deve ser resultado de medidas efetivas e articuladas para mitigar os diversos pontos de risco ou endereçar os aperfeiçoamentos que seguidamente têm sido apontados ao longo do processo de abertura.

Ao propor a realização de consulta pública para discutir a minuta de Portaria de abertura de mercado (CP Aneel 131/2022), por meio das Notas Técnicas 8/2022/ASSEC e 16/2022/ASSEC, o MME indicou alinhamento à sugestão da CCEE de separação entre atacado e varejo, de forma a justificar a inclusão do §2º do art. 1º da minuta, que criou a obrigatoriedade de que o consumidor com carga individual inferior a 500 kW seja representado junto à CCEE por agente varejista (peça 63, p 13-14):

(...) a 'representação individualizada de unidades consumidoras de pequeno porte na CCEE é desnecessária, podendo resultar em volume de dados que demandará altos custos de migração, manutenção e infraestruturas de processamento e de comunicação. Caso tais questões não sejam devidamente tratadas, poderão se configurar barreiras à opção de migração dos consumidores para o ACL'. Ademais, 'consumidores de maior porte costumam ter melhores condições de lidar com os riscos, as responsabilidades e as operações de mercado atacadista por meio de equipes internas e/ou terceirizadas, assumindo para si os custos de transação envolvidos nessas atividades. Para consumidores de menor porte, por sua vez, os custos de transação no mercado atacadista podem resultar proibitivos, de modo que a contratação de um comercializador varejista se torne mais atrativo'.

Cabe pontuar que a Aneel, na Nota Técnica 10/2022 (peça 54), expôs entendimento de que o consumidor deve buscar um comercializador varejista por suas vantagens, como a simplificação de sua atuação no ACL e a diminuição de custos de transação, e não por mera imposição normativa. Nesse sentido, sinaliza que 'qualquer imposição regulatória que represente barreira de entrada e atuação para qualquer atividade econômica deve ser seriamente ponderada e justificada'. A Agência resgata, inclusive, posicionamento do próprio MME na Nota Técnica 54/2019/CGPR/DGSE/SEE, que encerrou a CP 76/2019, em que o Ministério manifestou, na esteira do entendimento majoritário do setor à época, que a obrigatoriedade de representação por comercializador varejista, além de limitar a escolha do consumidor, potencialmente poderia significar uma 'reserva de mercado' para os comercializadores (peça 64, p. 5):

A maior parte (...) entende que não deveria haver limite obrigatório para essa representação e que a figura do comercializador varejista deveria ser incentivada por meios regulatórios, tornando-a atrativa para o mercado, independentemente de imposições. (...) a obrigatoriedade de representação junto à Câmara por comercializador varejista gera uma limitação na liberdade de escolha dos consumidores, além de criar uma reserva de mercado. Não obstante já existir um número considerável dessa modalidade de comercializadores habilitados junto à CCEE, as contribuições recebidas no âmbito da CP 76/2019 demonstram que a liberdade ampla tende a ser mais benéfica aos que desejam exercer seu direito de migração ao mercado livre.

No âmbito da Consulta Pública MME 131/2022, essa questão foi suscitada por alguns agentes, como a Associação Nacional dos Consumidores de Energia (ANACE), cuja contribuição cita também a NT 54/2019/CGPR/DGSE/SEE e perfilha suas conclusões, manifestando contrariedade à obrigatoriedade de representação por comercializador varejista junto à CCEE (peça 65, p. 6):

· a maioria das contribuições recebidas na Consulta Pública nº 76/2019 se manifestou de forma contrária ao estabelecimento de obrigatoriedade de representação de consumidores através do comercializador varejista;

· a maior parte entende que não deveria haver limite obrigatório para essa representação;

•que a figura do comercializador varejista deveria ser incentivada por meios regulatórios, tornando-a atrativa para o mercado, independentemente de imposições;

· muitos entendem que a proposta cria uma reserva de mercado, limitando a liberdade de escolha dos consumidores;

O MME, na Nota Técnica 27/2022/ASSEC, que realizou o fechamento da CP 131/2022, limitou-se a declarar que 'julga-se necessária a separação entre atacado e varejo, conforme também defendido pela CCEE', e que a proposta visa 'garantir a segurança do mercado e de cautela na abertura do mercado'.

Cabe apontar que a alternativa de estabelecer uma separação entre atacado e varejo com a representação obrigatória do consumidor de demanda inferior a 500 kW é legítima e faz parte do espectro de discricionariedade do gestor na hora de definir os limites de uma política pública. No entanto, entende-se que isso não isenta a administração de motivar de forma coerente e completa sua decisão, principalmente no caso em que existia entendimento anterior diverso (na CP 76/2019) e considerando o entendimento da Aneel de que uma eventual imposição deveria ser 'seriamente ponderada e justificada'.

Outro aspecto mencionado nas notas técnicas do MME e extensamente abordado nos estudos da CCEE, especialmente a 'Análise de Cenários para a Abertura de Mercado', é o tema da sobrecontratação das distribuidoras. Nas duas primeiras NTs, o Ministério menciona que o estudo da CCEE estabelece o cronograma levando em conta premissas de taxa de migração e conformação do portfólio das distribuidoras, 'de forma a buscar compatibilizar a migração com o estoque de contratos, ou seja, buscando evitar tanto a subcontratação como a sobrecontratação'.

Essas notas técnicas fazem menção também ao cálculo do risco máximo de sobrecontratação realizado pela CCEE (como visto no item 142) e que estima o custo em R$ 15,47 bilhões em oito anos; porém minimizam essa projeção de impacto afirmando que os valores calculados se tratam de um 'valor teórico' e que o valor esperado deverá ser inferior, considerando a inércia verificada nas migrações.

Finalmente, na Nota Técnica 27/2022/ASSEC, que realiza o fechamento da CP 131/2022, o MME argumenta que estudo da CCEE demonstra que a abertura do mercado para o Grupo A não traz grandes impactos à sobrecontratação das distribuidoras e que a contratação projetada para 2024 está em 105%, portanto dentro do limite regulatório. Para ilustrar este posicionamento, apresenta o gráfico do Balanço energético da 'Distribuidora Brasil', estimado para o período 2020-2028, conforme a Figura 10.

Figura 10 - Balanço Energético 'Distribuidora Brasil, período 2020-2028 (Fonte: CCEE, peça 68, p. 5).

As premissas para este cenário de relativo 'conforto' com relação à sobrecontratação, de acordo com o MME, são: (i) projeção de carga conforme 2ª Rev. Quadrimestral, ago/22; (ii) contratos de Itaipu considerados integralmente, conforme montantes atuais; (iii) migração de consumidores conforme tendência média observada nos últimos anos; (iv) geração distribuída conforme cenário de referência do PDE 2031; e (v) descotização das usinas da Eletrobras com redução de 20% ao ano a partir de 2023.

No entanto, ao analisar as contribuições dos agentes na CP MME 131/2022, percebe-se uma visão distinta das perspectivas de sobrecontratação das distribuidoras. Cite-se, por exemplo, o posicionamento da CPFL, que entende que a estimativa da CCEE utilizada como base para análise do Ministério minimiza os efeitos da sobrecontratação, e que o problema não estaria sendo suficientemente endereçado no processo de abertura em curso (peça 66, p. 12-13):

No âmbito desta CP131/22, apesar de a Nota Técnica n°16/2022/ASSEC do Ministério de Minas e Energia (MME) citar que a CCEE apresentou estudo de estimativa de uma máxima sobrecontratação, inclusive derivado da abertura do Grupo A com carga abaixo de 500 kW, o Grupo CPFL acredita que o impacto da sobrecontratação não deve ser minimizado neste momento (...) entende que a proposta do MME carece de endereçamento sobre o tema sobrecontratação, pois de acordo com a regulamentação vigente o custo da sobrecontratação originada pela migração de consumidores para o mercado livre é alocado apenas no mercado cativo. (CPFL) 179. Tanto a CPFL quanto outros agentes citam limitações em relação a algumas premissas do estudo da CCEE para realizar projeções, que podem levar a resultados que não refletem de forma fidedigna a realidade das concessionárias, tais como: adoção de estimativas baseadas na 'Distribuidora Brasil' e em valores médios de consumo e representação de grupos de consumo. Apesar do Grupo A com carga inferior a 500 kW representar 'apenas' 5,9% do consumo do SIN, esta participação é média no país, havendo diferenças de empresa para empresa na composição do perfil de sua carteira; no caso da CPFL, por exemplo, este grupo representaria 13,4%, o que altera significativamente a avaliação de impacto de eventuais migrações para o mercado livre.

Em sentido semelhante, a Neoenergia argumenta que a análise individual das áreas de concessão revela situações distintas com relação à sobrecontratação (peça 67, p. 4):

Ao analisar o problema sobre a ótica da Distribuidora Brasil, a CCEE intrinsicamente considera que o comportamento individual das diversas áreas de concessão é relativamente próximo entre si. Atendo-se, em primeiro momento à análise da sobrecontratação, isso só seria verdade caso os mecanismos de gestão contratual das distribuidoras fossem perfeitamente funcionais, especialmente os Mecanismos de Compensação de Sobras e Déficits (MCSDs). Porém, isso não encontra respaldo na realidade. Basta observar que as distribuidoras comumente apresentam níveis de contratação bastante diversos entre si.

Na mesma direção, é importante que se considere que as áreas de concessão de distribuição têm perfis de consumidores distintos entre si. Assim, há distribuidoras com maior presença de consumidores mais propensos a migrar do que em outras (em número e carga). Isso pode gerar reflexos distintos na sobrecontratação futura, além de outros aspectos operacionais relacionados a uma eventual migração massiva, que serão melhor detalhados adiante.

A discussão leva inevitavelmente a uma avaliação da efetividade dos mecanismos de descontratação existentes, uma vez que a consideração de um cenário de 'conforto' para as distribuidoras com relação a sobrecontratação depende do bom funcionamento destes mecanismos. A Neoenergia destaca essa baixa eficácia dos mecanismos de gestão do portfólio como um fato que tende a agravar o problema da sobrecontratação (peça 67, p. 8):

Ressalta-se, ainda, que a baixa eficácia dos mecanismos existentes para gerenciamento do portfólio contratual das distribuidoras e fatores exógenos que reduziram a carga, agravaram sobremaneira a sobrecontratação das distribuidoras. Com a ampliação da abertura do mercado, a sobrecontratação tende a se agravar ainda mais caso não seja adotada uma solução estrutural para o problema.

Desta forma, é notória, urgente e imprescindível a necessidade de considerar na ampliação da liberalização de mercado um modelo de adequação contratual e também criar novos mecanismos que possam proporcionar às distribuidoras um gerenciamento mais efetivo dos seus contratos para mitigar a sobrecontratação.

Ainda no escopo da CP 131/2022, a CPFL e Enel fazem avaliação semelhante sobre os mecanismos de descontratação, ressaltando que dar andamento à abertura de mercado sem um endereçamento efetivo das medidas de mitigação da sobrecontratação irá onerar demasiadamente os consumidores cativos (peça 66, p. 12):

Os mecanismos criados para auxiliar as distribuidoras na redução da sobrecontratação, como o Mecanismo de Compensação de Sobras e Déficits (MCSD) e Mecanismos de Venda de Excedentes (MVE), não se tornaram efetivos em casos de redução da demanda, como ocorrido nos anos de 2015/2016 e 2020/2021, onde todo o setor se encontrava sobrecontratado, não viabilizando o uso do MCSD para troca de energia. Já em relação ao MVE, o principal problema está no não fornecimento de garantias de recuperação dos custos dos contratos legados, uma vez que o excedente de energia será vendido a preço de mercado, possuindo grandes chances de estar abaixo do preço dos contratos da distribuidora.

Em relação a essa questão, na Nota Técnica 27/2022/ASSEC, o MME aponta que 'vem dispensando todos os esforços para minimizar os impactos para todos os agentes' e que estão sendo discutidos internamente os temas da 'descotização, contratos de Angra 1 e 2, alocação da energia de Itaipu, aprimoramento dos leilões regulados, separação fio e energia e principalmente o mecanismo de descontratação previsto na Lei n° 14.120/2021'. No entanto, argumenta que 'mudanças estruturais não acontecem quando se tenta equacionar todos os problemas de forma prévia' e que não é razoável tratar de todos os problemas da abertura de mercado previamente (peça 68).

Nesse sentido, a Nota Técnica do Ministério remete o tratamento do assunto a uma Consulta Pública futura, que seria publicada ainda no ano de 2022 (a CP 137/2022, realizada, porém não finalizada), para discutir o cronograma de abertura de mercado do segmento de baixa tensão (peça 68, p. 5):

(...) Ademais, sobre os temas que foram trazidos na CP e que serão tratados quando da discussão a respeito da abertura de mercado para os consumidores da baixa tensão, conforme já expresso na Nota Técnica nº 16/2022/ASSEC (0651929), de 22 de julho de 2022, destacam-se: encargos, agregador de medição, supridor de última instância, gerenciamento de portfólio e flexibilização da contratação, definição de produto padrão, faturamento, leilões regulados, encargos de migração e sobrecontratação, e impactos na Conta de Desenvolvimento Energético - CDE pelo aumento de subsídios a fontes incentivas etc.

Verifica-se, portanto, que o Ministério, ao analisar os estudos da Aneel e CCEE, bem como ao tratar as contribuições da CP 131/2022, deixou de endereçar de forma adequada o risco da sobrecontratação e a necessidade de medidas para aprimorar os mecanismos de gerenciamento do portfólio das distribuidoras. Verifica-se, por exemplo, que os questionamentos levantados sobre as premissas dos cenários de sobrecontratação da CCEE não foram considerados na análise do Ministério sobre a Consulta Pública, e as objeções e riscos aduzidos decorrentes da ineficácia dos mecanismos de gestão de portfólio tampouco tiveram tratamento.

Salienta-se que a concretização do risco de sobrecontratação resulta na transgressão ao disposto no §5º do art. 15 da Lei 9.074/1995, que dispõe que 'o exercício da opção pelo consumidor não poderá resultar em aumento tarifário para os consumidores remanescentes da concessionária de serviços públicos de energia elétrica que haja perdido mercado'.

Então, para verificar a conformidade legal, é necessário monitoramento contínuo para examinar os níveis de contratação das distribuidoras e de que forma a migração de consumidores para o ACL está impactando o mercado remanescente do ACR.

A ausência de processo dessa natureza e a falta de conhecimento quanto aos impactos reais das migrações e do aumento da taxa de migração tem o potencial de instaurar um 'estado das coisas ilegal'.

Na situação atual, sem dados e estimativas, não se pode descartar a existência de irregularidade em curso ou mesmo o risco de irregularidade iminente.

Cabe repisar que o estudo da CCEE, ao apresentar proposta de cronograma para a abertura de mercado, definiu conjunto encadeado de ações e medidas, a serem adotadas nos anos de 2022 a 2024, de forma a criar as condições necessárias para uma abertura sustentável, organizada e gradual, conforme já apresentado na Figura 9.

Pelo exame realizado dos documentos que subsidiaram a decisão dos gestores públicos que resultou na Portaria MME 50/2022, verificou-se que o Ministério de Minas e Energia não realizou todas as análises necessárias a uma abertura de mercado segura e ordenada, além de não ter dado tratamento a riscos importantes e conhecidos, em especial o de sobrecontratação das distribuidoras de energia.

Dos dados de denúncias de contratos (solicitações de migração junto às distribuidoras) veiculados pela Aneel, é possível verificar que o número de solicitações de migração até outubro de 2024 já é quase três vezes maior do que o mesmo período de 2022; o que demonstra a fragilidade da 'premissa' da CCEE da 'velocidade de migração se manter contínua e gradativa'. Ainda, outras premissas utilizadas nos estudos foram criticadas por diversos agentes do setor e os cenários utilizados para os cálculos da CCEE, de 2021, precisam ser atualizados, tendo em vista o crescimento além do projetado para a micro e minigeração distribuída, agravando a questão de sobra (sobrecontratação) das distribuidoras.

Embora as migrações autorizadas pela Portaria MME 50/2022 já tenham-se iniciado em janeiro de 2024, deve o MME, em conjunto com os demais órgãos responsáveis pelo SEB, atuar de forma a mitigar os riscos conhecidos, por meio de estudos para detalhamento maior e articulação de ações de forma transparente, organizada, com indicação de prazos, responsabilidades e fóruns de decisão.

Assim, entende-se pertinente determinar ao Ministério de Minas e Energia, nos termos do inciso II do art. 250 do Regimento Interno do TCU, em conjunto com a Agência Nacional de Energia Elétrica, a elaboração, no prazo de cento e vinte dias, de Plano de Ação para: (i) verificar o nível de contratação das distribuidoras, por área de concessão; (ii) estimar o impacto financeiro causado ao Ambiente Contratação Regulada (ACR) consequente das migrações de consumidores ao Ambiente de Contratação Livre (ACL), desde o início da vigência da Portaria 514/2018; (iii) de posse das estimativas, verificar a conformidade legal das migrações ao §5º do art.15 da Lei 9.074/1995; (iv) em caso de inconformidade legal, proceder com as medidas necessárias para garantir o estrito cumprimento legal.

Além disso, entende-se pertinente dar ciência ao MME, nos termos do art. 9º, inciso I, da Resolução-TCU 315/2020, de que a falta de avaliação quanto aos impactos causados ao Ambiente de Contratação Regulada, decorrentes da migração de consumidores para o Ambiente de Contratação Livre, pode resultar no descumprimento do disposto no §5º do Art. 15 da Lei 9.074/1995.

Dispensa da Avaliação de Impacto Regulatório (AIR)

Outro aspecto relevante do exame feito pelo Ministério no escopo do processo de abertura de mercado para o Grupo A foi a decisão de dispensar a realização de Avaliação de Impacto Regulatório (AIR).

A Lei 13.874/2019, que instituiu a chamada 'Declaração dos Direitos da Liberdade Econômica', estabeleceu em seu art. 5º que as propostas de edição e de alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados, editadas por órgão ou entidade da administração pública federal, serão precedidas da realização de análise de impacto regulatório, que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo para verificar a razoabilidade do seu impacto econômico.

Por sua vez, o Decreto 10.411/2020 regulamentou a análise de impacto regulatório e explicitou as hipóteses em que poderia haver a dispensa do instrumento (art. 17), dando concretude à faculdade prevista no art. 5º da Lei 13.874/2019. As hipóteses são:

Art. 17. A AIR poderá ser dispensada pela autoridade competente pela edição da norma, nas hipóteses de:

I - urgência;

II - ato normativo destinado a disciplinar direitos ou obrigações definidos em norma hierarquicamente superior que não permita, técnica ou juridicamente, diferentes alternativas regulatórias;

III - ato normativo considerado de baixo impacto;

IV - ato normativo que vise à atualização ou à revogação de normas consideradas obsoletas, sem alteração de mérito;

V - ato normativo que vise a preservar liquidez, solvência ou higidez: a) dos mercados financeiros, de capitais e de câmbio; ou b) dos sistemas de pagamentos; VI - ato normativo que vise a manter a convergência a padrões internacionais;

VII - ato normativo que reduza exigências, obrigações, restrições, requerimentos ou especificações com o objetivo de diminuir os custos regulatórios; e

VIII - ato normativo que revise normas desatualizadas para adequá-las ao desenvolvimento tecnológico consolidado internacionalmente, nos termos do disposto no Decreto nº 10.229, de 5 de fevereiro de 2020.

Cabe ressaltar que, no âmbito do MME, conforme disposto na Portaria Normativa

30/GM/MME-2021, foi criada uma instância colegiada de deliberação sobre AIR, denominada Comissão Permanente de Análise de Impacto Regulatório (CPAIR), que possui a competência de propor e decidir sobre a dispensa de AIR.

No caso concreto, a solicitação de dispensa foi suscitada pela NT 27-ASSEC/MME; de acordo com a citada nota técnica, como o objetivo da portaria em questão é a redução dos limites de carga para contratação de energia por consumidores da AT no mercado livre, a matéria se enquadraria na hipótese do inciso VII do art. 17, Decreto 10.411/2020. Cita, para corroborar esse entendimento, definição de 'restrição regulatória' estabelecida na Instrução Normativa SEAE/ME 60, de 16/8/2022 (que regulamenta o Decreto 10.411/2020 no que se refere à manifestação da SEAE nos processos de impacto regulatório):

Art. 2º Para os fins desta Instrução Normativa, considera-se:

(...)

XVI - proibição ou restrição regulatória - a vedação, disposta em ato normativo, que iniba, restrinja ou proíba, direta ou indiretamente, prática, oferta, método, disponibilização, produção, desenvolvimento, uso, funcionamento, entre outros, de produto ou serviço

A decisão pela dispensa da AIR foi tomada pelo Comitê CPAIR, em 21/9/2022 (Peça 34):

Decisão: O Comitê, por unanimidade, decidiu nos termos do inciso VIII, do art. 7º, da Portaria

Normativa nº 30/GM/MME, de 22 de outubro de 2021, propor: (i) dispensar a elaboração de Análise de Impacto Regulatório - AIR por ocasião da proposta de Portaria que define o limite de carga para contratação de energia elétrica por parte dos consumidores de que trata o § 3º do Art. 15 da Lei nº 9.074, de 7 de julho de 1995, com fulcro no inciso VII do art. 17 da Portaria Normativa nº 30/GM/MME, de 22 de outubro de 2021.

Não obstante a justificativa apresentada, entende-se que interpretação de que a redução de requisitos de carga para migração para o mercado livre constitui, tão somente, uma redução das exigências ou requerimentos visando a redução de 'custos regulatórios' é, no mínimo, questionável.

Veja-se que a definição de custos regulatórios é dada pelo inciso IV do art. 2º do Decreto 10.411/2020:

IV - custos regulatórios - estimativa dos custos, diretos e indiretos, identificados com o emprego da metodologia específica escolhida para o caso concreto, que possam vir a ser incorridos pelos agentes econômicos, pelos usuários dos serviços prestados e, se for o caso, por outros órgãos ou entidades públicos, para estar em conformidade com as novas exigências e obrigações a serem estabelecidas pelo órgão ou pela entidade competente, além dos custos que devam ser incorridos pelo órgão ou pela entidade competente para monitorar e fiscalizar o cumprimento dessas novas exigências e obrigações por parte dos agentes econômicos e dos usuários dos serviços prestados;

Ainda que possa se argumentar que a migração para o mercado livre poderá implicar um custo menor da tarifa de energia a ser paga pelo consumidor de alta tensão, essa é uma realidade que depende diretamente da conjuntura do mercado de energia, incluindo o valor do PLD, a ocorrência ou não de restrições hidrológicas ou de escassez de oferta, entre outros. Não se pode afirmar que haverá necessariamente uma redução dos custos para se estar em 'conformidade com as novas exigências' da comercialização de energia no mercado livre.

Na verdade, opiniões de agentes do mercado são no sentido de que o processo de migração para o ACL, da maneira como está concebido hoje, é complexo e custoso, e em alguns casos pode não ser vantajoso para o consumidor, que terá que gerenciar variáveis e riscos da contratação de energia, além da possibilidade de adequação de sistemas de medição.

Além disso, como observado nos tópicos precedentes, sobejam os exemplos fáticos e argumentos de agentes do setor, incluindo ponderações da CCEE e Aneel, que demonstram que o processo de abertura de mercado de energia gera impactos reais. O ato (Portaria MME 50/2022) pode levar a custos não apenas para os consumidores que optarem pela migração, como para diversos outros agentes - em especial, as distribuidoras e os consumidores cativos que não têm o direito de migrar para o ACL.

Nesse sentido, cabe mencionar por exemplo o cálculo feito pela CCEE do valor máximo estimado de sobrecontratação das distribuidoras decorrente do processo de abertura de mercado, que pode chegar a R$ 15,47 bilhões em oito anos, abordado nos itens precedentes deste achado (item 142 e seguintes).

De fato, não restou demonstrado pelo MME, em suas análises sobre esta fase do processo de abertura de mercado, que eventuais custos da migração de consumidores do ambiente regulado para o ambiente livre serão completamente mitigados, em conformidade com o que estabelece o §5º do art. 15 da Lei 9.074/1995.

§ 5o O exercício da opção pelo consumidor não poderá resultar em aumento tarifário para os consumidores remanescentes da concessionária de serviços públicos de energia elétrica que haja perdido mercado.

Também merece destaque que agentes do setor elétrico entendem que, a depender do tratamento regulatório dado às atividades de Supridor de Última Instância (SUI), bem como os aperfeiçoamentos normativos que definem parâmetros de agregação de medição e atividades de corte/suspensão de fornecimento pelas distribuidoras, pode haver necessidade de alterações legais, bem como de Avaliação de Impacto Regulatório para evitar a alocação de custos de forma assimétrica a determinados agentes do mercado, em detrimento de outros. Estes aspectos serão aprofundados no Achado 3 acerca dos aperfeiçoamentos no arcabouço regulatório da comercialização varejista e simplificação do processo de migração (itens 207 a 328).

Cabe pontuar, no entanto, que, ao dispensar a realização de AIR no âmbito da flexibilização dos requisitos de carga para migrar para o ACL, o Comitê Permanente de Avaliação de Impacto Regulatório (CPAIR) propôs que fosse incluído para compor a agenda de ARR (Avaliação de Resultado Regulatório) do Ministério de Minas e Energia para o período de 2023 - 2026 uma avaliação dos resultados da Portaria 50/2022, nos termos da § 2º do art. 13 do Decreto 10.411/2021.

Tal proposta, de caráter indicativo pela CPAIR, ainda que não supra a ausência de AIR para dimensionar os impactos das medidas relacionadas com a abertura de mercado, pode representar um importante avanço no sentido do aperfeiçoamento da abertura de mercado como política pública e servir de elemento para eventuais redirecionamentos de ações e mitigação de riscos.

Tendo em vista ser o ano de 2024 o primeiro da abertura efetiva do mercado livre para o Grupo A com carga inferior a 500 kW, com a previsão de aumento significativo de consumidores por meio do processo de representação varejista, entende-se pertinente a realização, ainda no ano de 2024, de avaliação de resultado regulatório prevista para o período de 2023 a 2026.

Assim, diante do exposto, propõe-se recomendar ao MME, nos termos do inciso III do art. 250 do Regimento Interno do TCU: i) a realização, no ano de 2024, da Avaliação de Resultado Regulatório (ARR) previsto pelo Comitê Permanente de Avaliação de Impacto Regulatório (CPAIR), para avaliar os resultados e impactos da abertura de mercado para o Grupo A; e ii) a realização, no prazo de 180 dias, de Avaliação de Impacto Regulatório (AIR) ou estudos de impacto que possam subsidiar medidas legislativas (projetos de lei ou medidas provisórias) previamente às medidas de flexibilização necessárias para a abertura de mercado do Grupo B.

Além disso, entende-se pertinente dar ciência ao MME, nos termos do art. 9º, inciso I, da Resolução-TCU 315/2020, de que a dispensa de Avaliação de Impacto Regulatório (AIR) em processo de abertura de mercado para consumidores do Grupo A com carga inferior a 500 kW em que há, no mínimo, dúvidas razoáveis quanto à possibilidade de impactos regulatórios advindos de riscos não completamente mitigados como a sobrecontratação das distribuidoras, ineficácia de mecanismos de gestão de portfólios e previsão de novas atividades para agentes do setor decorrentes de adequações substantivas no modelo de migração e adesão ao mercado livre, está em desconformidade com o disposto no art. 5º da Lei 13.874/2019.

III.3. Aperfeiçoamentos Regulatórios da Comercialização Varejista e Simplificação do Processo de Migração

Este tópico descreve as análises, procedimentos de auditoria e achados relacionados à Questão 3, que indaga sobre a adequação do arcabouço normativo-regulatório acerca da migração de consumidores ao mercado livre e sobre comercialização varejista para suportar a expansão do mercado livre com o advento da Portaria MME 50/2022.

O comercializador varejista foi introduzido no ambiente de contratação livre por meio da REN 570/2013, com o objetivo de ampliar a participação dos consumidores no mercado livre. O varejista assume responsabilidades comerciais e operacionais perante a CCEE em nome dos consumidores a que representa, o que possibilita acesso facilitado ao ACL para consumidores de menor porte. Com a publicação da Lei 14.120/2021, foi incluído o art. 4º-A na Lei 10.848/2004, para estabelecer que a comercialização no ambiente de contratação livre poderá ser realizada mediante a comercialização varejista, conforme regulamento da Aneel, caracterizada pela representação junto à CCEE daqueles a quem seja facultado não aderir diretamente à Câmara.

Ainda que já existisse um contexto normativo tratando do varejista, percebia-se a necessidade de aperfeiçoamentos regulatórios em relação ao tema. Cabe apontar que a Agenda Regulatória da Aneel para o biênio 2023/2024, incluiu a atividade C&M21-20, visando aprimorar a resolução normativa que trata da comercialização varejista, sob a ótica de abertura de mercado (flexibilização dos requisitos de migração para o ACL) e da viabilidade de agregação de dados de medição, como prioritária para o tema estratégico de Abertura do Mercado.

No contexto do presente Acompanhamento, o que direcionou os exames sobre a comercialização varejista foi identificar em que medida os aprimoramentos regulatórios propostos e em exame pela Aneel abarcam as principais temas de atenção já sinalizados pela CCEE e outros agentes em consultas públicas e discussões setoriais anteriores; se os aprimoramentos regulatórios serão tempestivamente implementados, tendo em vista a premência da nova fase de migração de consumidores para o mercado livre a partir de janeiro/2024; e se há riscos de ocorrência de gargalos na operacionalização pela CCEE do processo de migração dos consumidores do Grupo A com carga inferior a 500 kW, tendo em vista a expectativa de aumento significativo do influxo de novos consumidores, necessidade de processamento de informações e suporte por parte da Câmara.

Como achado, registrou-se intempestividade no aperfeiçoamento regulatório da comercialização varejista para permitir a migração para o ACL em janeiro de 2024.

Achado 3 - Intempestividade no aperfeiçoamento regulatório da comercialização varejista para

permitir a migração para o ACL em janeiro de 2024

Situação Encontrada

Verificou-se intempestividade no processo de aperfeiçoamento regulatório da comercialização varejista e simplificação do processo de migração para o ACL que deveria ter sido realizada em consequência à Portaria Normativa MME 50/2022.

Embora houvesse previsão inicial, na agenda regulatória 2022/2023 da Aneel, para deliberação de aprimoramento regulatório dos normativos que tratam de comercialização varejista ainda no 1º semestre de 2023, o início do processo aconteceu apenas em agosto/2023. A Agência, em reunião com a equipe de fiscalização, mencionou que o atraso se deveu às recentes mudanças ocorridas no órgão, tanto no âmbito de Diretoria quanto pela reestruturação interna.

A Consulta Pública 28/2023 da Aneel foi publicada em 30/8/2023, com prazo de contribuição que se estendeu até 13/10/2023, a menos de dois meses para o início do prazo da nova etapa de abertura do mercado, voltada para os consumidores do Grupo A com carga inferior a 500 kW, prevista pela Portaria MME 50/2022 para 1º/1/2024.

A CP foi instruída pela Nota Técnica 76/2023-SRM/ANEEL, que buscou endereçar os tópicos para aperfeiçoamento regulatório da comercialização varejista considerados mais relevantes pelo Regulador. É praticamente consenso no setor que uma adequada regulação de diversos temas da comercialização varejista é fator crítico para a eficácia e segurança da próxima etapa da abertura de mercado.

No entanto, como se verá neste achado, devido à intempestividade no processo de aperfeiçoamento regulatório do assunto, com a conclusão da CP 28/2023 apenas em 12/12/2023, portanto cerca de duas semanas antes de vigorar a nova fase da abertura de mercado para o Grupo A, não foi possível garantir tempo hábil ou razoável para que os agentes envolvidos pudessem implementar processos e realizar ajustes eventuais de procedimentos, bem como evitar riscos relevantes no processo de migração, tanto para os próprios consumidores, quanto para outros agentes envolvidos, como as distribuidoras de energia e o mercado como um todo.

Chama a atenção, especialmente, o fato de que alguns dos pontos centrais do aperfeiçoamento regulatório, que são a simplificação do processo de migração e a agregação de dados de medição, tem na Nota Técnica da Aneel apenas diretrizes gerais, tendo sido objeto de endereçamento detalhado apenas na contribuição da CCEE à CP 28/2023 (peça 69), que desenhou em sua proposta um 'Novo processo estrutural de acesso ao mercado livre'.

Deve-se ressaltar que a CCEE propõe a adoção de uma 'proposta transitória de envio de dados cadastrais e de medição' já de imediato, e o teor da contribuição da Câmara, que possivelmente será adotado pela Aneel, não foi objeto de discussão e análise por parte dos agentes no âmbito da CP.

Nesse sentido, entende-se caracterizada uma inconformidade no processo de discussão e aprimoramento normativo, uma vez prejudicados os princípios da transparência, da participação social e da motivação, bem como aquilo que determina o §3º do art. 9º da Lei 13.848/2019, transcrito abaixo.

4 3º A agência reguladora deverá disponibilizar, na sede e no respectivo sítio na internet, quando do início da consulta pública, o relatório de AIR, os estudos, os dados e o material técnico usados como fundamento para as propostas submetidas a consulta pública, ressalvados aqueles de caráter sigiloso.

Além disso, como se verá adiante no achado, há indícios de que alguns tópicos do aperfeiçoamento regulatório da comercialização varejista foram tratados de maneira insuficiente na Consulta Pública, o que pode gerar incertezas em relação ao bom andamento do processo de abertura de mercado.

Por último, foram apontados problemas relacionados à não realização de Avaliação de Impacto Regulatório pela Aneel e MME para medidas previstas neste aperfeiçoamento regulatório da comercialização varejista e, considerando esta próxima fase da abertura de mercado de energia elétrica, especialmente quanto a: i) atribuição às distribuidoras de responsabilidade de Supridor de Última Instância (SUI) de forma indireta, sem o arcabouço regulatório adequado e sem o dimensionamento do impacto dessa atividade, com riscos de gerar judicialização e alocação ineficiente de custos entre os ambientes de contratação; e ii) atribuição de custos indiretos e riscos com a operacionalização de sistemática de tratamento da inadimplência (suspensão e desligamento) dos consumidores varejistas, sem a adequada avaliação prévia da extensão dos impactos.

Análise

Visão geral da Nota Técnica Aneel 76/2023 e da Consulta Pública Aneel 28/2023

A Agenda Regulatória da Aneel para o biênio 2023/2024 previu o aprimoramento de resolução normativa que trata da comercialização varejista 'sob a ótica da abertura de mercado (flexibilização dos requisitos de migração para o ACL) e da viabilidade de agregação de dados de medição' como prioritárias para o tema da Abertura de Mercado.

O objeto da CP 28/2023 é 'obter subsídios para aprimoramento da elaboração de ato regulamentar, a ser expedido pela ANEEL, para aprimoramento da regulamentação vigente, tendo em vista o disposto na Lei nº 14.120/2021 e na Portaria Normativa MME nº 50/2022'.

A Nota Técnica 76/2023-SRM/ANEEL (peça 70), que fundamentou a CP, buscou apresentar e endereçar diversos temas relacionados à comercialização varejista e ao processo de abertura do mercado estabelecido pela Portaria 50/MME/2022, especialmente quanto:

a) tratamento da inadimplência;

b) hipóteses e efeitos de desligamento da CCEE;

c) hipóteses e efeitos de encerramento de representação de varejista;

d) extinção de varejista e desligamento da CCEE;

e) sistema de gestão de informações da CCEE;

f) divulgação de 'contrato-padrão';

g) atendimento do consumidor no caso de retorno ao ACR;

h) tratamento de consumidores livres (<500 kW) descontratados;

i) sistemática de agregação de medição e alocação ao varejista.

Muitos dos assuntos abordados na CP 28/2023 derivam de discussões anteriores, como a Tomada de Subsídios Aneel 10/2021 e CP MME 131/2022, além de documentos técnicos da CCEE, como o 'Modelo Conceitual para a Abertura do Mercado' (CTA CCEE, peça 52).

Nos tópicos a seguir, será feito um breve resumo sobre a discussão acerca dos principais pontos abordados na Nota Técnica 76/2023 e em estudos e discussões setoriais anteriores, bem como avaliar o tratamento dado pela Aneel na nota técnica que fundamentou a abertura da CP 28/2023 em relação às principais considerações feitas por agentes do setor no âmbito da referida CP.

Tratamento da inadimplência

A percepção dos riscos com inadimplência dos novos consumidores representados por comercializadores varejistas no processo de abertura e expansão do mercado livre sempre foi um dos pontos críticos apontados por agentes do setor para o baixo crescimento da comercialização varejista.

No Relatório do Grupo Temático 'Abertura de Mercado' do GT de Modernização do

Setor Elétrico (Portaria 187/2019-MME), por exemplo, já aparecia a preocupação com o fato de que 'o aumento do número de consumidores livres, a inadimplência e o descumprimento de contratos bilaterais podem trazer prejuízos financeiros aos envolvidos e para o mercado como um todo'.

Apontava-se a necessidade de aperfeiçoamento na legislação, para prever a possibilidade de corte e desligamento do consumidor livre em razão de inadimplência (Relatório GT Abertura de Mercado, peça 53, p. 34):

(...) é necessário reforçar na lei o comando para o corte do fornecimento de energia para os consumidores livres que forem desligados da CCEE, ou que estejam inadimplentes com seus fornecedores de energia.

Na Tomada de Subsídios 10/2021 - TS 10/2021, em que a Aneel apresentou estudo sobre as medidas regulatórias necessárias para permitir a abertura do mercado livre para consumidores com carga inferior a 500 kW, um dos temas abordados foi em relação a quais pontos da regulação do comercializador varejista deveriam ser objeto de aperfeiçoamento ('Quais aperfeiçoamentos devem ser realizados no modelo de representação e comercialização varejista? - pergunta 8' - peça 54, p. 171-180).

As contribuições apresentadas na TS 10/2021, com relação ao tratamento de consumidores inadimplentes, solicitaram a regulamentação da Lei 14.120/2021, no que tange ao desligamento de integrantes da CCEE, suspensão do fornecimento de unidades consumidoras modeladas na CCEE, encerramento da representação de consumidores por gerador varejista ou por comercializador varejista, assim como o aprimoramento da regra e maior rapidez no desligamento de consumidores inadimplentes.

De acordo com a Aneel, ainda que a regulamentação do comercializador varejista então vigente (REN 570/2013) já se encontrasse em concordância com as alterações trazidas pela Lei 14.120/2021, era pertinente a discussão e o aprimoramento deste ponto. Como resultado de processos de consolidação de normas do Regulador, foi editada a REN 1.011/2022, que estabelece requisitos e procedimentos para autorização para comercialização de energia (revogando a REN Aneel 570/2013).

Em sua proposta conceitual de abertura de mercado, a CCEE expôs entendimento de que a regulação deveria ser adequada para prever o tratamento dos casos de inadimplemento e suspensão em uma relação direta entre comercializadores e distribuidoras, sem envolver a Câmara, tendo em vista a entrada de grande número de unidades consumidoras no mercado livre, muitas delas representadas por comercializadores varejistas.

Contextualização normativa

A Lei 14.120/2021 trouxe uma série de disposições que afetaram o tratamento do tema

'inadimplência' no âmbito do mercado livre, e, por conseguinte, trouxe reflexos nas normas sobre comercialização varejista da Aneel e CCEE. Por força do art. 6º da Lei 14.120/2021, alterou-se a redação de dispositivos da Lei 10.848/2004, inserindo elementos importantes para a regulação da matéria.

Um dos pontos foi a previsão das hipóteses de desligamento dos integrantes da CCEE, com a inclusão dos §§8º e 9º do art. 4º da Lei 10.848/2004:

(...)

5 8º O desligamento dos integrantes da CCEE, observado o disposto em regulamento da Aneel, poderá ocorrer, entre outras hipóteses:

I - de forma compulsória;

II - por solicitação do agente; e

III - por descumprimento de obrigação no âmbito da CCEE

§ 9º O desligamento da CCEE de consumidores de que tratam os arts. 15 e 16 da Lei nº 9.074, de 7 de julho de 1995, e o § 5º do art. 26 da Lei nº 9.427, de 26 de dezembro de 1996, ensejará a suspensão do fornecimento de energia elétrica a todas as unidades consumidoras modeladas na CCEE.

Conforme já mencionado, de acordo com a Aneel, a regulamentação setorial já se encontraria aderente aos termos do §8º do art. 4º da Lei 14.120/2021, conforme estabelece o art. 47 da REN Aneel 957/2021, alterada em abril de 2022 pela REN Aneel 1.014/2022.

A Resolução Normativa Aneel 957/2021, estabelece que o desligamento de integrantes da CCEE pode se dar: (i) de forma compulsória (art. 48); (ii) por solicitação do agente (art. 49); e (iii) por inadimplemento (art. 50 e seguintes).

Como disposto no §9º do art. 4º da Lei 14.120/2021, o desligamento do consumidor como integrante da CCEE enseja a suspensão do fornecimento de todas as 'unidades consumidoras modeladas' na Câmara.

De fato, como aponta a Aneel, a REN 957/2021, no §3º do art. 50, já se indica disciplina similar, com prazo de início específico:

6 3º O inadimplemento de consumidor especial ou livre implica seu desligamento da CCEE e a suspensão do fornecimento a todas as unidades consumidoras modeladas sob seu perfil na CCEE, operando-se os efeitos do desligamento a partir do primeiro dia do mês subsequente à efetivação da última suspensão do fornecimento à unidade consumidora.

§ 4º O desligamento de agente de comercialização ou de geração inadimplente opera-se de pleno direito a partir do primeiro dia do mês subsequente à data em que seja proferida tal decisão pela CCEE.

Segundo a Aneel, o processo de desligamento de integrante da CCEE está vinculado a procedimentos de suspensão do fornecimento de energia no caso de inadimplência, suspensão esta que, por sua vez, envolve ações das distribuidoras, transmissoras, CCEE e Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), em prazos e roteiro determinados na regulação atual (REN 957/2021 e Procedimentos de Comercialização da CCEE).

Este fluxo do processo de suspensão do fornecimento é representado na Figura 11.

Figura 11 - Processo de suspensão de fornecimento de agente diretamente representado na CCEE (peça 70, p. 9).

No caso do consumidor representado por comercializador varejista, tem-se um fluxo semelhante, com prazos distintos, e com a diferença de que a inadimplência do representado é assumida pelo comercializador varejista até o momento da suspensão do fornecimento.

Figura 12 - Processo de suspensão de fornecimento de agente representado por comercializador varejista na CCEE (peça 70, p. 10)

Pelo desenho normativo existente, o desligamento do consumidor livre pode demorar mais de 70 dias para ser operacionalizado, o que é visto pelos agentes como excessivo. A Aneel, na NT 76/2023, expõe o entendimento de que os prazos atualmente estabelecidos pela regulamentação para suspensão de fornecimento de energia pelo desligamento de integrante da CCEE são maiores que o desejado e podem favorecer a inadimplência (peça 70, p. 11).

Nesse sentido a CP Aneel 28/2023 coloca em discussão a proposta de redução de prazos máximos para o desligamento, de sessenta para trinta dias (caso de consumidor integrante da CCEE), e de trinta para quinze dias (no caso de consumidores varejistas inadimplentes).

Por outro lado, a proposta da Aneel enfatiza a necessidade de alocar os custos pelo descumprimento do prazo de suspensão de fornecimento por parte da distribuidora ou transmissora como 'ineficiência da empresa', e, portanto, sem cobertura tarifária (peça 70, p 4-5).

Com efeito, o descumprimento por parte da distribuidora ou da transmissora quanto ao prazo estabelecido para a suspensão do fornecimento de energia elétrica lhes obriga - para fins regulatórios - o custo de energia elétrica inadequadamente consumida por falha desta suspensão prevista, sem prejuízo de eventuais medidas de cobrança por parte da concessionária face ao respectivo consumidor.

(...) A atribuição do custo incorrido à concessionária deve se dar a partir do seu descumprimento de obrigação da suspensão do fornecimento, o que impõe e justifica a continuidade da medição e da modelagem de perfil pela CCEE até a efetiva suspensão do fornecimento. Ademais, ressaltase que tais custos decorrentes de descumprimento da obrigação da concessionária e, assim, de ineficiência da empresa, dizem respeito à concessionária e em nada devem se comunicar com a cobertura tarifária ofertada pelo consumidor da respectiva área de concessão no ambiente de contratação regulada. (grifei)

No entanto, cabe assinalar que, se por um lado esta proposta tem acolhida aparentemente positiva entre os comercializadores varejistas e suas entidades representativas, por outro lado, pelo que se depreende das contribuições de outros agentes do setor, encontra resistências principalmente entre as distribuidoras.

A principal crítica formulada é que a Aneel não considerou que, com o aumento expressivo da quantidade de migrações de consumidores do ACR para o ACL, e a atribuição de novos serviços, atividades e responsabilidades às distribuidoras, com prazos exíguos, em relação ao processo de notificação, suspensão e desligamento de consumidores livres por inadimplência, haverá necessariamente um incremento de custos e riscos a serem alocados à atividade da distribuidora sem a correspondente remuneração, e sem a devida previsão no escopo do mesmo contrato de concessão (peça 71, p. 17):

Com base nestes números [projeção de migrações para 2024 com base em denúncias de CCEARs] pode-se perceber que a expectativa é de aumento expressivo no número de migrações para o ambiente livre nos próximos anos. Como efeito reverso, espera-se que as atividades operacionais das distribuidoras se multipliquem, tanto para operacionalizar as migrações, como suspender o fornecimento de unidades consumidoras que possam ser desligadas da CCEE. Com este aumento, é possível que o prazo de 5 a 10 dias que se possui hoje para a efetivação da suspensão pelas distribuidoras não seja razoável, uma vez que é necessário mobilizar equipes de forma mais célere, o que também imputa custos para a execução deste serviço. Portanto, se faz necessário repensar este processo, bem como seus prazos.

(...)

Outro ponto a se destacar é que o processo de suspensão de fornecimento de uma unidade consumidora pode apresentar diversos entraves, como impedimentos de acesso ao sistema de medição para efetuar a suspensão, serviço público ou essencial à população, liminares judiciais etc. Portanto, atribuir o custo pelo atraso na suspensão do fornecimento de forma automática via contabilização do mercado de curto prazo à distribuidora, sem antes avaliar os fatos pelos quais ocorreu a situação, se mostra temerário.

A Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee), por exemplo, entende que a sistemática proposta pela Aneel acaba por transferir custos e riscos que são do ambiente livre para o mercado regulado (Contribuição da Abradee à CP 28/2023, peça 72, p. 18):

Outro aspecto trazido pela ANEEL na Consulta Pública e que merece atenção diz respeito a alocação de custos à Distribuidora ou Transmissora por eventual descumprimento de prazo da ação de suspensão de fornecimento. A ABRADEE entende que o risco e os custos associados ao desligamento de agentes situados no mercado livre devem se restringir a este ambiente de contratação, sob pena de elevar o risco das atividades de distribuição e de transmissão com atividades específicas não previstas em seu contrato de concessão, sem oferecer contrapartida para reequilíbrio da equação econômica e financeira contratada.

A entidade aborda ainda, em sua contribuição, aspecto do que considera ser um tratamento não isonômico do Regulador em relação às consequências do não cumprimento de prazos de suspensão de fornecimento para distribuidoras e para outros entes envolvidos no processo, como a CCEE, a Aneel e o ONS, avaliando que há uma 'alocação desproporcional de custos às distribuidoras e transmissoras' (peça 72, p. 18):

(...) A ABRADEE entende que o risco e os custos associados ao desligamento de agentes situados no mercado livre devem se restringir a este ambiente de contratação, sob pena de elevar o risco das atividades de distribuição e de transmissão com atividades específicas não previstas em seu contrato de concessão, sem oferecer contrapartida para reequilíbrio da equação econômica e financeira contratada.

Cabe destacar que no processo proposto, a ANEEL trata de forma não isonômica as Distribuidoras e Transmissoras. No fluxo do processo de desligamento, a maior parte do tempo é dedicada às atividades da própria Câmara, da ANEEL, e em menor medida do ONS. Todavia, tais agentes não possuem prazos específicos e regulamentados para todas as etapas do desligamento.

Ademais, partindo do conceito equivocado de alocar custos nos agentes de distribuição e transmissão pela violação de prazos, os demais agentes envolvidos na suspensão do fornecimento também deveriam arcar com os custos caso venham a atrasar as etapas sob sua responsabilidade.

Aponta como uma das causas para esta distorção a dispensa, pela Aneel (e porque não dizer, pelo próprio MME no âmbito do processo que culminou na abertura de mercado da Portaria Normativa 50/2022, conforme tratado nos itens 188 a 206 deste Relatório), da realização de AIR da medida (peça 72, p. 19):

Cabe salientar que a Análise de Impacto Regulatório (AIR) foi dispensada no voto de abertura do processo de consulta pública. Sendo assim, não pôde a Agência constatar se os prazos atualmente vigentes para a ação de suspensão do fornecimento de consumidores livres são suficientes para a realidade que se apresentará a partir de 2024, haja vista a excepcionalidade em questão e a base reduzida de clientes atendidos atualmente no ACL por Comercializador Varejista.

Em mesmo sentido, a CPFL considerou que a ausência de AIR prejudica a avaliação da Aneel quanto aos impactos da medida, e que a premissa da Nota Técnica 76/2023/-SGM/ANEEL, de não alocar custos do ambiente livre ao regulado não estaria sendo observada pelo Regulador, ao não avaliar e sopesar todos os riscos inerentes à situação. De forma geral, a empresa aponta uma série de elementos que poderiam ter sido expostos e analisados no âmbito de uma AIR, para mensurar o eventual impacto das medidas propostas, tais como: previsão de que o descumprimento do prazo pode se dar por motivos alheios à gestão da distribuidora; casos em que há alta taxa de judicialização; ineficiência de outros agentes da cadeia do processo; incremento de custos administrativos com suspensão do fornecimento; não considerar a possibilidade de flexibilidade na gestão da inadimplência e busca do 'máximo esforço' do varejista na recuperação da inadimplência, a exemplo do que é exigido das distribuidoras para o consumidor regulado (peça 73, p. 16-17):

Finalmente, a própria motivação do ajuste normativo mostra-se incompleta, pela falta de uma AIR, não identificando a materialidade da existência de atrasos no processo de desligamento decorrentes de ineficiências injustificadas dos agentes de transmissão e de distribuição, sem quantificar eventual sobrecusto associado. O Grupo CPFL Energia recomenda realização de AIR para verificar a real existência de um problema regulatório e a necessidade de intervenção, o qual acredita-se não existir de fato.

A Abradee ainda argumenta no sentido de uma maior complexidade operacional da suspensão dos consumidores do mercado livre, além de atribuir um custo e um risco que até então não era previsto na concessão, e cujos impactos, dada a ausência de AIR, não foram adequadamente dimensionados (peça 72, p. 19):

(...) com a alteração proposta do regulamento, a distribuidora compulsoriamente deverá efetuar os cortes comandados pela CCEE. Ademais, a distribuidora pode se ver obrigada a efetuar os cortes de consumidores adimplentes com o uso do Fio. Ademais, a suspensão de consumidores do Grupo A, que estão no ACL, tem maior complexidade operacional, demandando procedimentos dispensáveis quando se trata de consumidor regulado. Assim, dada a excepcionalidade do tema e a ausência de AIR, não é possível apontar qual o prazo adequado para realização da suspensão nesse momento. Em síntese, atribuir custos de inadimplência do consumidor varejista à distribuidora fere o princípio da isonomia. Ademais, será imputado aos agentes de distribuição um risco sem que se tenha avaliado se os prazos para execução dos cortes de fornecimento estão adequados. Por fim, em vista da dispensa de AIR, não foram avaliados os impactos econômicos e financeiros desses custos sobre a concessão. [grifei]

Outra ponderação feita pela Neoenergia aponta para a virtual inexequibilidade do prazo proposto pela Aneel, o que demandaria ajustes regulatórios em um horizonte temporal curto. Além disso, defende a necessidade de realização de uma AIR pela Aneel para dimensionar os impactos para as distribuidoras da alocação da atividade de custos operacionais do corte físico de consumidores livres inadimplentes, associado ao prazo e penalidades para a execução da atividade, de forma que houvesse uma distribuição mais equilibrada dos riscos e interesses entre comercializadora e distribuidora.

Assim, entendeu-se, em um primeiro momento, não ser possível assegurar que o tratamento dado pela Aneel ao tópico de 'tratamento de inadimplências', no escopo do aperfeiçoamento regulatório da comercialização varejista em curso na Consulta Pública 28/2023, sem a realização de avaliação e dimensionamento dos impactos da medida por meio da Avaliação de Impacto Regulatório (AIR), seja suficiente para endereçar os riscos representados pelo significativo aumento de migração de consumidores esperado na próxima fase de abertura de mercado de energia em janeiro de 2024.

Neste ponto, o Relatório Preliminar encaminhado aos comentários dos gestores propunha recomendação no sentido que o aprimoramento regulatório então em discussão na Consulta Pública 28/2023 levasse em consideração aspectos dos riscos de inadimplência e de eventual comportamento oportunista de consumidores contratados, evitando a alocação indevida de custos de serviços e riscos. No entanto, após análise feita pela unidade técnica dos argumentos e razões apresentados pela Aneel (peça 108), considerou-se insubsistente encaminhamento nesse sentido, uma vez que a Agência logrou demonstrar ter dado tratamento, em diversos pontos do aperfeiçoamento regulatório materializado na REN Aneel 1.081/2023, a fragilidades relacionadas à questão da inadimplência, dos alegados custos adicionais de suspensão de fornecimento bem como em relação a medidas de neutralização de eventual comportamento oportunista de consumidor descontratado.

Supridor de Última Instância (SUI)

O Supridor de Última Instância (SUI) é uma figura regulatória, prevista no desenho do mercado livre de vários países, responsável pelo suprimento excepcional e transitório de energia elétrica a consumidores representados por comercializadores varejistas que sejam inabilitados a atuar no mercado livre ou que optem pela saída dele.

Desta forma, o SUI evita que o consumidor representado fique sem o devido fornecimento de energia elétrica durante o período de transição até a contratação de novo comercializador varejista. Também impede que tal fornecimento fique sob a responsabilidade do comercializador regulado (distribuidora, no atual arcabouço jurídico brasileiro), evitando prejuízos ao equilíbrio de mercado.

Tal figura é importante pois, em um contexto de entrada de milhões de pequenos consumidores no mercado livre, a maioria desses representados por comercializadores varejistas, e considerando que esses consumidores não irão conhecer prontamente todos os riscos e peculiaridades do setor, a saída de um grande comercializador varejista pode ensejar a suspensão de fornecimento de grande parte do mercado.

Ademais, pelo arcabouço regulatório atual (Portaria MME 50/2022 e art. 4º-A da Lei 10.848/2004), o consumidor de pequeno porte (com demanda inferior a 500 kW) deverá, necessariamente, ser representado por agente varejista, sem a possibilidade de ser um agente da CCEE ou comprar diretamente no mercado livre sua energia.

A CCEE, em sua 'Proposta Conceitual de Abertura de Mercado' de 2021 (peça 52), defende a importância da criação desse instrumento, visto como fundamental para o funcionamento de um mercado aberto em processo de transição e expansão (peça 52, p. 26-27):

(...) é preciso criar mecanismos para tratar a possibilidade de um comercializador varejista perder sua habilitação ou sair do mercado por qualquer motivo. Consumidores que se encontrem nessa situação deverão buscar um novo comercializador varejista. No entanto, não é prudente ou razoável assumir que os consumidores atingidos imediatamente tomarão ações para buscar novos fornecedores. Na verdade, é esperado que grande parte desses consumidores sequer tenha conhecimento do ocorrido em um primeiro momento. Por outro lado, tais consumidores poderão continuar conectados na rede da distribuidora, ainda que consumindo energia sem um fornecedor estabelecido. Tal situação poderia gerar um desequilíbrio nas operações do comercializador regulado, uma vez que seria obrigado a assumir, prontamente, uma quantidade elevada de consumidores para os quais não possui contratos de energia. Como conclusão, é preciso garantir a continuidade do fornecimento para os consumidores impactados pela perda de seu comercializador varejista sem, no entanto, trazer impactos para o comercializador regulado. (grifos acrescidos)

No documento, a Câmara sugere que esse papel seja atribuído às distribuidoras locais, em função da segurança e robustez dessas empresas e pela expertise para execução das atividades. Ademais, propõe um prazo de atendimento pelo SUI de até três meses; vencido esse período, algumas ações poderiam ser tomadas no sentido de interromper o fornecimento ou aumentar a tarifa cobrada.

Isto posto, a criação de figura regulatória com essas atribuições, com o claro estabelecimento das regras da função dentro do mercado livre é altamente recomendada pelos agentes institucionais e econômicos.

No âmbito da Tomada de Subsídios Aneel 10/2021, que resultou na Nota Técnica 10/2022-SRM/ANEEL, houve grande debate acerca da necessidade da instituição das figuras do Comercializador Regulado e do Supridor de Última Instância. Os principais pontos dessa discussão foram dispostos no item 'III.4.' da referida nota técnica. Diversos agentes do setor contribuíram com relatos de experiências internacionais na implantação do SUI em mercados varejistas diversos, como nos EUA, Portugal, Reino Unido e países da União Europeia (Nota Técnica 10/2022-ANEEL, peça 54, p. 20):

Segundo relatório conjunto, publicado em 2020 pela Agência para a Cooperação dos Reguladores de Energia da União Europeia (ACER) e pelo Conselho dos Reguladores Europeus de Energia (CEER), apenas dois estados membro (Bulgária e França) não possuíam mecanismos de suprimento de último recurso. São atribuídas funções diferentes para o SUI, a depender de cada país. De modo geral, a maioria dos reguladores conceberam o SUI como uma precaução à saída de supridores do mercado (devido à falência ou revogação das licenças de operação, por exemplo). Proteger os consumidores inativos ou os consumidores com dificuldades de pagamento são outras funções atribuídas ao SUI. Consumidores inativos são aqueles que não escolhem supridor quando mudam de residência, não escolheram fornecedor quando ocorreu o processo de abertura (nos países em que o supridor padrão é também o SUI) e quando seus contratos expiram e não é tomada nenhuma atitude. Essa segunda função refere-se às situações em que o consumidor residencial não consegue encontrar fornecedor no mercado livre (nenhum supridor está disposto a firmar contrato com este consumidor) ou foi desligado do seu supridor atual por falta de pagamento.

Nos mercados abertos em que há essa previsão, o comercializador regulado é o ente responsável por suprir os consumidores que se mantém no ACR ou que desejam voltar (caso exista essa opção). Trata-se do papel exercido atualmente pela concessionária de distribuição e, mesmo não havendo uma separação das atividades de fio e comercialização, seria natural que a distribuidora mantivesse o exercício dessa atividade.

Uma das linhas da discussão da TS Aneel 10/2021, de acordo com as contribuições feitas e as respostas às perguntas formuladas pela Aneel, foi no sentido de se atribuir às distribuidoras locais o papel de comercializador regulado e a função de SUI, ainda que de forma transitória (peça 54, p. 23):

Grande parte das respostas à pergunta 4 sugerem que o comercializador regulado seja oriundo da distribuidora local e assuma também a função de SUI, ao menos em um primeiro momento, sendo adequadamente remunerado para tanto. Posteriormente, tais funções poderiam ser assumidas por um outro agente de mercado, mediante a realização de um processo competitivo.

Portanto, conforme descrito acima, a maioria dos agentes concordam que a forma considerada de menor complexidade e de menores custos de transação para a implementação do comercializador regulado e do SUI é atribuir essas atividades à concessionária de distribuição, pelo menos num primeiro momento. À medida que o mercado amadurecer e se desenvolver, novos desenhos de mercado para essas atividades podem ser discutidos. (grifei)

De acordo com a Aneel, haveria entendimento quase unânime dos agentes de que não haveria necessidade de alteração em dispositivos regulatórios para permitir que a distribuidora exerça as atividades de comercializador regulado e SUI. Há, no entanto, alerta de que, a depender das diretrizes do Poder Concedente pode haver necessidade de definições futuras no âmbito regulatório, principalmente do ponto de vista tarifário, para que as distribuidoras fossem remuneradas pelas novas atividades exercidas, na medida em que incorressem em novos custos e riscos.

Retornando ao escopo da CP 28/2023, a Nota Técnica 76/2023 não menciona de forma expressa a função de supridor de última instância, pelo menos com esse nome. O tratamento que a Aneel deu à questão, no tópico 'Tratamento de Consumidores Livres - Grupo A inferior 500 kW - Descontratados', foi equipará-lo à situação de um consumidor potencialmente livre cujo processo de migração não foi concluído, hipótese prevista no art. 168 da REN 1.000/2021, reproduzido a seguir:

Art. 168. Caso o processo de migração do consumidor potencialmente livre para o ACL não se conclua por motivo não atribuível à distribuidora, devem ser observadas as seguintes disposições:

I - após o término do período estabelecido no CCER, a distribuidora, em substituição à suspensão do fornecimento, fica autorizada a efetuar o faturamento e a cobrança mensal de energia elétrica para ressarcimento das repercussões financeiras incorridas;

II - o faturamento do inciso I deve ser calculado pela multiplicação da energia fornecida pela

diferença, se positiva, entre o Preço de Liquidação de Diferenças - PLD médio mensal publicado pela CCEE e o custo médio de aquisição de energia elétrica pela distribuidora considerado nos processos de reajuste tarifário, acrescidos os tributos incidentes;

III - o pagamento do valor do inciso II é devido até o pleno restabelecimento contratual com a distribuidora para compra de energia elétrica;

IV - deve ser dado ao consumidor potencialmente livre tratamento semelhante aos casos de retorno de consumidor livre ao ACR;

V - os valores monetários associados ao ressarcimento a que se refere o inciso I devem ser revertidos para a modicidade tarifária, devendo a distribuidora contabilizar esses valores mediante registro suplementar na conta de fornecimento de energia elétrica; e

VI - o faturamento do ressarcimento pelas repercussões financeiras incorridas, na forma do inciso I, deve ser somado à aplicação das tarifas de aquisição de energia elétrica pelos demais consumidores.

De acordo com a Aneel, essa solução buscaria 'alocar o risco ao próprio consumidor', que é o beneficiário da migração ao ACL, considerando que esta é uma faculdade. Entende ainda a Agência que não há possibilidade de considerar o retorno desse consumidor ao ACR como exposição involuntária para a distribuidora, por constituir uma transferência do risco do mercado livre para o cativo.

Convém sublinhar que a distribuidora tem a prerrogativa de ser comunicada com antecedência de cinco anos sobre o retorno do consumidor livre à condição de regulado, por força do §8º do art. 15 da Lei 9.074/1995:

7 8o Os consumidores que exercerem a opção prevista neste artigo e no art. 16 desta Lei poderão retornar à condição de consumidor atendido mediante tarifa regulada, garantida a continuidade da prestação dos serviços, nos termos da lei e da regulamentação, desde que informem à concessionária, à permissionária ou à autorizada de distribuição local, com antecedência mínima de 5 (cinco) anos.

Este prazo de cinco anos poderá, de acordo com o §9º, ser reduzido a critério da concessionária.

Observe-se que o dispositivo do art. 168 da REN 1.000/2021 'autoriza' a distribuidora a fazer o faturamento da energia do consumidor descontratado a título de despesas incorridas, no lugar de suspender seu fornecimento; no entanto, na proposta de alteração do art. 170, a redação proposta pela Aneel ao §4º ('serão faturados') não dá margem para discricionariedade e, na prática, institui uma 'obrigação' de a distribuidora realizar este atendimento:

8 4º Os consumidores cuja representação no ACL por agente varejista seja obrigatória e que necessitem retornar ao ACR serão faturados pela Distribuidora com fins para a modicidade tarifária, conforme disposições do art. 168, até a celebração de CCER.

Essa solução foi bastante contestada por distribuidoras e pelas entidades representativas desses agentes, que caracterizaram como uma 'imposição' unilateral de um ônus à distribuidora de atividade de instituto regulatório inexistente no ordenamento jurídico, ressaltando que a compulsoriedade do atendimento é característica específica do Supridor de Última Instância (Contribuição Abradee CP 28/2023, peça 72, p. 13):

Na redação grifada, verifica-se um comando normativo para que a distribuidora realize o atendimento precário, o que é muito diferente de autorizar a distribuidora a fazê-lo. Assim, a proposta de REN impõe o atendimento precário a distribuidora, além de associar esse tratamento a uma situação completamente distinta daquela verificada quando o consumidor não consegue migrar do ACR para o ACL. Lembra-se que a compulsoriedade do atendimento precário é uma atribuição do Supridor de Última Instância - SUI. A figura do SUI já foi cogitada no contexto da

Medida Provisória (MPv) nº 998/20, posteriormente convertida em Lei nº 14.120/21, mas sua

criação não foi acatada no texto final publicado, atualmente vigente. Assim, não é um agente existente no bojo do ordenamento, embora se evidencie ser uma figura tida como necessária à abertura ampla do mercado.

Além disso, a Entidade avalia que o atendimento compulsório dos consumidores descontratados contraria o disposto no §8º do art. 15 da Lei 9.074/1995, e a solução proposta não é capaz de garantir remuneração adequada, e, por consequência, sustentabilidade financeira ao serviço prestado como SUI (Contribuição Abradee CP 28/2023, peça 72, p. 7):

(...) embora não haja referência direta, a proposta normativa atribui às distribuidoras o papel de Supridor de Última Instância (SUI) sem quaisquer contrapartidas ou previsão legislativa, o que acaba por colidir com a atual regra do § 8º do art. 15 da Lei nº 9. 074/95. Para consumidores que tenham sido descontratados no ACL e cujo retorno ao ACR antes do prazo legalmente estabelecido de 5 anos não tenha sido aceito pela distribuidora, a ANEEL propõe na CP que a distribuidora, compulsoriamente, realize o atendimento precário (sem contrato de energia) a esse consumidor, aplicando aquilo que estabelece o art. 168 da REN nº 1.000, de 2021. Cabe salientar que o modelo normatizado reverte a cobrança para ressarcimento das repercussões financeiras incorridas, quando o PLD for superior ao PMIX da distribuidora, com posterior reversão à modicidade tarifária. Ou seja, a distribuidora não receberia qualquer remuneração pelo serviço prestado como SUI, sendo ainda exposta a riscos não previstos em seus contratos de concessão.

Em relação à remuneração pelo serviço como SUI, inclusive, a CCEE manifestou em sua contribuição à Tomada de Subsídios 10/2021 a necessidade de que, mesmo assumida pela distribuidora local, a atividade não resulte em prejuízos, sendo garantido o ressarcimento de custos para garantir o equilíbrio econômico-financeiro, englobando encargos, impostos, tarifa de energia e outros custos administrativos, ressaltando a importância de que haja uma contabilização segregada das demais atividades da distribuição (Nota Técnica 10/2022-SRM/ANEEL, peça 54, p. 25):

Um ponto importante é que o uso do SUI tem um caráter emergencial. Assim, faz-se razoável que o valor pago pela energia em última instância sinalize esse caráter. Uma proposta preliminar para discussão é estabelecer o maior valor entre o PLD verificado e a tarifa do comercializador regulado local, acrescido de encargos setoriais assumidos pelo SUI, impostos, custos administrativos e outros custos necessários para garantir o equilíbrio da atividade do Supridor de Última Instância. Propõe-se que o papel de Supridor de Última Instância seja assumido pela distribuidora local em função da segurança e robustez das empresas, expertise para execução das atividades e simplicidade para implantação. A atividade deve ser realizada com solidez e não deve resultar em prejuízos para a distribuidora, que inclusive é um dos objetivos da própria atividade do SUI. Assim, no entendimento da Câmara, o atendimento pelo SUI deve ser contabilizado de forma segregada das demais atividades de gestão da rede de distribuição e de comercialização regulada e com garantia de equilíbrio econômico-financeiro.

Outras contribuições de agentes apresentadas na Consulta Pública 28/2023, como a Enel, CPFL, Neoenergia e Copel, demonstram grande preocupação com os riscos regulatórios inerentes ao início da próxima fase de abertura do mercado sem a consolidação e implementação do Supridor de Última Instância. A posição da Copel, por exemplo, é de que a solução proposta para o atendimento do consumidor do Grupo A com carga < 500 kW eventualmente 'descontratado' não contempla todos os aspectos regulatórios necessários, o que poderá gerar questionamentos judiciais. Argumenta ainda que, dependendo do valor (alto ou baixo) do PLD e da diferença deste para o PMIX (preço médio dos contratos da distribuidora) da distribuidora, existe o risco de diferentes sinalizações em termos de preço para o consumidor e impactos no custo da atividade prestada pela concessionária (peça 74, p. 9-10):

(...) Na prática, trata-se da implementação da figura do Supridor de Última Instância - SUI, ainda que o texto não mencione diretamente este termo. Por se tratar de um tema complexo, carente do devido debate nas esferas competentes, entendemos que a solução proposta não contempla todos os aspectos inerentes ao caso. Como consequência, entende-se que a operacionalização do texto regulatório proposto suscitará questionamentos, com potencial de acarretar a sua judicialização.

O principal ponto refere-se à possibilidade de o consumidor permanecer, no limite, até 5 anos, usufruindo do fornecimento de energia pela distribuidora sem contrato regulado (CCER), à mercê das repercussões financeiras.

Ainda que o estabelecimento de um período de transição, até a celebração do CCER, seja possível do ponto de vista regulatório, na prática, dificilmente um consumidor se sujeitarás as condições impostas, sobretudo em momentos de PLDs elevados. Isso poderá gerar conflitos com custos e efeitos às distribuidoras sem o devido tratamento regulatório. Além disso, em momentos de PLDs abaixo do PMIX (sem repercussões financeiras) o consumidor poderá ser incentivado a permanecer na condição de transição, sem contrato. Neste sentido, entendemos que há alguns pontos que necessitam de maior aprimoramento regulatório antes do advento das distribuidoras como supridores de última instância - SUI.

De maneira geral, as contribuições das distribuidoras apontam para o entendimento da 'onerosidade' da atividade inerente ao SUI, que agrega custos e riscos adicionais à atividade regulada da distribuidora (CPFL, peça 73).

Em verdade, a situação com que se defronta o regulador é complexa. Por um lado, estabelecer regramento regulatório detalhado e completo para o SUI, sem o balizamento previsto em lei de qual espécie de modelo de supridor a ser adotado, dentre os diferentes tipos existentes na experiência internacional (e descritos no item III.4 da Nota Técnica 10/2022-SRM/ANEEL), poderia representar de certa forma extrapolação da competência da Aneel contida no art. 3º, inciso XVII, da Lei 9.427/1996.

Por outro lado, avançar na liberalização do mercado para o Grupo A (< 500 kW), e principalmente, em fase posterior, em direção à abertura do mercado para o Grupo B sem uma regulamentação consistente das atribuições principais do SUI, de forma a preservar o equilíbrio econômico-financeiro da atividade, mostra-se arriscado e temerário. Além disso, ao potencialmente alocar para as distribuidoras riscos e custos inerentes ao funcionamento do mercado livre, sem ao menos ter um dimensionamento adequado dos impactos por meio de Avaliação do Impacto Regulatório (AIR) dessa medida, acaba-se por contrariar o § 5º do art. 15 da Lei 9.074/1995.

Esta equipe de auditoria chegou a sopesar a conveniência quanto a recomendar ao MME postergar a data de abertura de mercado prevista na Portaria MME 50/2022 até que a Aneel finalizasse as modificações regulatórias necessárias a um processo seguro de abertura para o Grupo A e demais etapas de abertura. O assunto foi debatido durante o Painel de Achados, ocorrido em 8/11/2023.

Naquela ocasião, a maioria dos especialistas e agentes presentes arguiram pela não alteração da data de abertura pelas seguintes razões: i) segurança jurídica; ii) mais de 10.000 unidades consumidoras já haviam solicitado migração junto às distribuidoras; iii) os principais riscos apontados por esta equipe estão em fase de tratamento pelo Regulador e/ou estão sendo tratados nos projetos de lei atualmente em discussão no Congresso Nacional.

Considerando as razões expostas pelos agentes, a necessidade de estabilidade e previsibilidade no SEB e a publicação da Resolução Normativa Aneel 1.081/2023, que deu tratamento específico ao tema e concluiu a CP 28/2023, esta equipe entendeu não ser oportuna recomendação no sentido de postergar os prazos previstos na Portaria MME 50/2022.

No entanto, cabe dar ciência ao Ministério de Minas e Energia e à Agência Nacional de Energia Elétrica, nos termos do art. 9º, inciso I, da Resolução-TCU 315/2020, que a inércia em promover os aprimoramentos regulatórios decorrentes da Portaria MME 50/2022 apresenta uma série de riscos ao Setor Elétrico Brasileiro, não apenas aos consumidores que podem optar pela migração para o ACL, mas para os demais consumidoras e agentes de distribuição; além de comprometer a previsibilidade necessária ao bom funcionamento do mercado.

Além disso, na fase de comentários ao Relatório Preliminar, a Aneel argumentou no sentido de que a criação por ato regulatório do Supridor de última Instância carece de amparo legal, e que sua regulamentação deve ser antecedida de ato legislativo instituindo a figura regulatória no ordenamento jurídico do setor elétrico (ver peça 108, Análise dos Comentários dos Gestores).

Nesse sentido, entende-se pertinente recomendar ao Ministério de Minas e Energia para que realize estudos e análises para definir a viabilidade e necessidade de se criar, por meio de proposta legislativa/normativa, a figura do SUI no processo de liberalização gradativa do mercado de energia no Brasil, definindo suas características, atribuições e contornos jurídico-regulatórios, para posterior regulamentação pela Aneel.

Agregação de medição e simplificação da migração para o ACL

Uma das dimensões importantes do aperfeiçoamento regulatório colocado em discussão na CP 28/2023 é a relativa à agregação de medição dos consumidores varejistas e as medidas de simplificação do processo de migração para o ACL.

O tema foi objeto de discussão na Tomada de Subsídios 10/2021 da Aneel, em que uma das questões abordadas foi a dos requisitos técnicos necessários para a migração para o ACL, entendidos basicamente como a adequação ou a necessidade de modernização da estrutura de medição existente, tendo em vista as particularidades do mercado livre de energia.

Como se sabe, no Ambiente de Contratação Livre, dentro das regras atualmente vigentes, os consumidores devem adequar seus sistemas de medição de acordo com exigências das distribuidoras, de acordo com critérios estabelecidos pela Aneel (Prodist - Módulo 5 - Sistemas de Medição e Procedimentos de leitura) e pelo ONS (Procedimentos de rede do ONS - Submódulo 2.14 - Requisitos mínimos para o Sistema de Medição para Faturamento), tendo em vista a necessidade de representação das Unidades Consumidoras de forma individual na CCEE para fins de contabilização no mercado livre.

De acordo com a CCEE, após o pedido de adesão, o consumidor potencialmente livre deve providenciar a adequação de seu Sistema de Medição para Faturamento (SMF) para permitir a coleta diária de seus dados de medição de geração e consumo pelo Sistema de Coleta de Dados de Energia (SCDE) da CCEE. As especificações técnicas a serem consideradas estão no Módulo 12 dos Procedimentos de Rede do Operador Nacional do Sistema e Procedimentos de Distribuição de Energia Elétrica no Sistema Elétrico Nacional (Prodist) Módulo 5 - Sistemas de Medição.

A estrutura de medição deve possibilitar a integração ao SCDE da CCEE a fim de realizar coleta e tratamento de dados de consumo, em grau de complexidade compatível com o processo de contabilização da energia (peça 52, p. 25):

(..) a regulamentação exige a representação individualizada na CCEE de todas as unidades consumidoras que migram para o ACL, independente do seu porte. (...) Além do grande volume de dados, que exigem elevados investimentos em infraestruturas de processamento e comunicação, o processo de modelagem de cada unidade consumidora na CCEE demanda o envio de diversas informações e documentos e envolve diversas interações entre a CCEE, distribuidora local e consumidor.

Cabe ressaltar que a tendência atual das concessionárias de distribuição é a de caminharem para a substituição gradativa dos medidores eletromecânicos por eletrônicos. Tais medidores geram dados de faturamento de forma mais precisa e inteligente, além de possibilitarem a execução de tarefas remotas e o uso de ferramentas de combate às perdas elétricas. Parte dos especialistas e agentes do mercado consideram essa adequação tecnológica fundamental para a abertura de mercado, no médio-longo prazo.

No entanto, nas discussões da Tomada de Subsídios Aneel 10/2021, após considerações sobre as alternativas em termos de estrutura de medição, concluiu-se que, apesar das vantagens do sistema de medição inteligente (smart meters) em termos da oferta de produtos de energia mais sofisticados e melhoria da eficiência do mercado livre como um todo, o custo da imposição de requisitos técnicos que obrigassem à substituição da tecnologia de medição como critério para a migração para o ACL constituiria uma barreira significativa do ponto de vista técnico e econômico.

Assim, caminhou-se para um modelo, defendido pela CCEE ('Proposta Conceitual para Abertura de Mercado', peça 52), que possibilita a abertura do mercado sem a troca massiva de medidores dos consumidores, realizando a agregação dos dados de medição dos consumidores, desenvolvendo para isso metodologia de tratamento de dados que permita o atendimento de requisitos de contabilização e liquidação das operações no Mercado de Curto Prazo (MCP).

Considerando que o principal vetor atual de crescimento do ACL se dará pela migração dos consumidores do Grupo A representados por comercializadores varejistas, como determina a Portaria Normativa MME 50/2022, a agregação e tratamento dos dados de medição torna possível a adesão de maior quantidade de consumidores, que não mais necessitarão estar individualmente representados na CCEE, simplificando o processo de migração e também modelando o processo de coleta e medição do consumo de energia desses consumidores ('Proposta Conceitual para Abertura de Mercado', CCEE, peça 52, p. 26):

Pela proposta, as unidades consumidoras de uma determinada área de concessão de distribuição clientes de um determinado comercializador varejista seriam representadas na CCEE como uma unidade consumidora virtual deste comercializador. Em outras palavras, cada comercializador varejista terá na CCEE uma unidade consumidora virtual para cada distribuidora ou permissionária em tenha clientes.

Na Figura 13, é ilustrada a proposta da CCEE de representação das unidades consumidoras com demanda contratada abaixo de 500 kW, para que estas não sejam representadas individualmente na Câmara para fins de contabilização do mercado.

Figura 13 - Proposta da CCEE de representação das unidades consumidoras abaixo de 500 kW (Fonte: CCEE, peça 52, p. 25).

Nota Técnica 76/2023 - Aneel

Na exposição que faz do assunto na Nota Técnica de abertura da CP 28/2023, a Aneel ressalta, com base em estudo elaborado pela CCEE, que 'espera-se que um volume considerável de unidades consumidoras apresente interesse em migrar para o ACL', sendo o potencial de migração da ordem de 72 mil unidades, a partir de 2024.

Com base em Ofício Circular encaminhado às distribuidoras (Ofício Circular 001/2023- SGM/ANEEL), a Aneel vem organizando o conjunto de informações sobre as efetivas denúncias de contrato - termo utilizado para indicar a solicitação de migração do consumidor junto à distribuidora - efetuadas junto às distribuidoras.

No momento da elaboração da Nota Técnica, já havia 5.301 consumidores com contratos denunciados no ambiente regulado e com previsão de migração para 2024, com concentração maior nos meses de janeiro e julho. Em 16/11/2023, conforme demonstrado na Figura 6, já havia mais de 10.500 solicitações de migração, com carga aproximada de 784 MWm. Ressalta-se o elevado número de migrações para janeiro/2024: quase 3.000 UCs.

A Aneel avaliou então a pertinência de realizar a agregação de dados de medição para o conjunto de consumidores varejistas representados, e definiu entendimento de que a CCEE deve ser a gestora dos dados de medição dos consumidores representados, 'ficando responsável pela recepção dos dados de medição e alocação desses dados ao ativo de consumo dos respectivos agentes varejistas, de que trata o art. 11 da REN 1.011/2022' (peça 70, p. 17).

Para atribuir esta responsabilidade, a Agência entende haver amparo no art. 4º da Lei 10.848/2004, bem como no inciso IV e no §1º do art. 2º do Decreto 5.177/2004.

Analisando o regramento infralegal sobre coleta e disponibilização de dados de medição de consumo para a CCEE (Módulo 5 PRODIST; Submódulo 2.1 dos Procedimentos de Comercialização), entende a Agência não haver necessidade de alteração de regulação, destacando 'que a proposta ora apresentada resulta na manutenção dos processos e sistemas atualmente já implementados seja da CCEE (SCDE) ou das distribuidoras' (peça 70, p. 17-18).

No entanto, em relação ao cadastro de ponto de medição e modelagem dos consumidores representados por varejistas na CCEE, vislumbra a Agência 'eventual possibilidade de simplificação do processo', ressaltando que o detalhamento técnico será avaliado e discutido no âmbito da CP 28/2023, com eventual impacto na REN 1.000/2021 e nos Procedimentos de Comercialização (PdCs).

Em conclusão, avalia a Aneel que (peça 70, p. 18):

De posse dos dados de medição dessas unidades consumidoras, restará à CCEE, conhecendo a relação de cada consumidor com o seu respectivo agente varejista, agregar as cargas de cada agente varejista, de modo que na contabilização seja introduzida uma única informação de carga por agente varejista, podendo ser segregada, não exaustivamente, por submercado e por tipo de energia, a ser definido conforme processo de cadastro e modelagem do ativo.

Em contraste com o tratamento sugerido pela área técnica da Aneel a este ponto, de natureza mais conceitual e genérico, a contribuição apresentada pela CCEE à CP 28/2023 demonstra detalhamento maior, abrangência de alterações e até reconfiguração do modelo de acesso ao mercado livre por meio da comercialização varejista, como se verá a seguir.

De acordo com a CCEE, as adequações necessárias não se limitam ao processo de agregação de medição e consolidação de dados de consumo para processamento pela Câmara. O impacto da simplificação do processo abrange a fase de adesão e cadastramento junto à CCEE, e as fases de habilitação comercial e técnica, previstas nos Procedimentos de Comercialização da Câmara.

A complexidade do fluxo do processo de adesão está representada na Figura 14.

Figura 14 - Processo de adesão à CCEE (Fonte: Site CCEE, acessado em 8/11/2023).

A complexidade, nível de exigências, onerosidade e relativa 'burocracia' desse processo de adesão é considerado por agentes do setor elétrico uma barreira para o crescimento mais acentuado do mercado livre. Na realidade, tal processo foi concebido com os requisitos para o mercado atacadista de energia, baseado nas características de consumidores de grande porte e com grau elevado de autonomia para operar no mercado de energia.

Conforme esclarece a CCEE (peça 69, p. 6-7):

O processo atual de adequação de medição, de cadastro e de modelagem do ativo de consumo passa por várias etapas e é constantemente alvo de críticas dos agentes, que alegam dificuldades, mesmo no âmbito do mercado atacadista. Neste processo, após a denúncia do contrato de suprimento cativo com as distribuidoras, há a necessidade de adequar os Sistemas de Medição e Faturamento (SMF), conforme os Procedimentos de Rede, os de Distribuição e os de Comercialização. (...) Muitas vezes, são necessárias obras para adequar a cabine primária e troca de medidor e, em alguns casos, há exigências de etapas e requisitos adicionais aos previstos nas normativas como, por exemplo, construção de portão de acesso direto ao SMF exclusivo para a equipe da distribuidora, alteração de localização e de padrão do TC e TP, troca do painel, dentre outros.

(...) é fato que há a obrigatoriedade de as distribuidoras enviarem diariamente para a CCEE, no intervalo de 5 em 5 minutos, os dados de consumo ativo (IN/OUT) e reativo (IN/OUT), além dos dados de tensão e corrente trifásicos. Logo, em um mês de 31 dias, há a necessidade de envio de 89.280 dados para a CCEE contabilizar apenas uma unidade consumidora. Portanto, para garantir que esses dados estejam em plenas condições de leitura e envio, sem desvio de comunicação que comprometam os prazos regulatórios, é factível que as distribuidoras exijam do consumidor um rigor significativo na adaptação da medição, com o intuito de minimizar qualquer descumprimento de obrigação das concessionárias, sujeito a penalidades, pelo imenso fluxo de informações exigido diariamente pela CCEE. (grifei)

E conclui pela inadequação do processo atual para a operacionalização da abertura do mercado e migração de novos consumidores varejistas em larga escala (Contribuição CCEE, CP 28/2023, peça 69, p. 8):

Diante desse extenso contexto, é evidente que os processos atuais, voltados ao atacado, de adequação de medição, de cadastro, de modelagem na CCEE e das rotinas mensais para operacionalização do consumidor tornam-se impraticáveis, se exigidos para o varejo, podendo configurar um dos maiores gargalos operacionais no âmbito da abertura de mercado, quando milhares/milhões de consumidores poderão ter acesso ao ACL. A exigência do processo atual, pela sua robustez e precisão, tem coerência para a apuração da medição de geradores, de distribuidoras e de consumidores no atacado, mas não se justifica para os consumidores no varejo, quando comparado o custo com o respectivo benefício.

Em sua contribuição à Consulta Pública 28/2023, a CCEE apresenta à Aneel as premissas e o detalhamento de um 'novo processo estrutural de acesso ao mercado livre', baseado na reformulação completa do processo atual, buscando uma ampla simplificação do processo cadastral, de medição e de agregação de dados para contabilização do mercado, conforme a Figura 15.

Figura 15 - Esquema geral das simplificações para o novo modelo estrutural do varejo (Fonte: CCEE)

317. O novo modelo de acesso ao mercado livre proposto pela CCEE suprime a necessidade de adequação do Sistema de Medição e Faturamento (SMF), o extenso cadastro e a necessidade de documentos para o mapeamento do ponto de medição, o detalhado processo de envio diário e ajuste de dados de consumo, e a complexa modelagem dos ativos. Todos esses processos seriam substituídos por um cadastro simples enviado pelo comercializador varejista e validado pela distribuidora.

Os dados de medição seriam enviados pelas distribuidoras, por meio de aplicação via plataforma de integração, correspondentes aos dados de medição horários para cada UC, utilizando como base o processo de faturamento já existente no Ambiente Regulado. Com isso, substitui-se a obrigatoriedade de envio de dados de consumo à CCEE com intervalos de cinco em cinco minutos (totalizando 89.280 registros por UC com a aferição de dez grandezas), pelo envio dos dados de consumo horário, o que equivale a 744 dados de apenas uma grandeza (consumo ativo), em um mês de 31 dias, por exemplo.

De posse dos dados cadastrais dos consumidores varejistas e dos dados de medição, a CCEE fará o cruzamento de informações cadastrais e de consumo, agregar as cargas por varejista 'de forma que a soma do consumo horário das unidades consumidoras pertencentes ao mesmo conjunto

'distribuidora, perfil varejista e submercado' sejam contabilizadas agregadas, otimizando os processamentos de contabilização do mercado' (Contribuição CCEE, peça 69, p. 9).

De fato, verifica-se que a contribuição da CCEE à Consulta Pública 28/2023 tem o condão de endereçar de forma bastante abrangente os aprimoramentos regulatórios, e os desenvolvimentos tecnológicos, de novos sistemas e procedimentos de modo a permitir uma adequada estratégia de operacionalização do processo de migração de consumidores do varejo para o ACL.

Cabe, no entanto, apontar que o desenvolvimento desse novo modelo estrutural de acesso ao mercado livre e operacionalização da comercialização do varejo, proposto pela CCEE, foi apresentado de forma detalhada aos agentes do setor e à Aneel de forma intempestiva, às vésperas do início da nova fase de migrações prevista pela Portaria MME 50/2022, em janeiro de 2024.

Além disso, ao não prever os detalhes operacionais deste novo modelo na Nota Técnica 76/2023 da Aneel, e apenas no documento da contribuição da CCEE, a que os agentes só tiveram acesso após o encerramento do período de contribuições da Consulta Pública 28/2023, resta prejudicado o princípio da transparência e da participação social, bem como aquilo que determina o §3º do art. 9º da Lei 13.848/2019, uma vez que um dos fundamentos técnicos e materiais da Consulta Pública não constou, em sua completude, como elemento disponível a todos os agentes.

Um exemplo prático dessa questão é, por exemplo, a contribuição da Neoenergia. A empresa declara sua concordância com a diretriz da Aneel de que a CCEE seja agregadora dos dados de medição dos varejistas, porém entende necessária nova consulta pública para discutir o detalhamento do processo de agregação. Ora, esta proposta da Neoenergia só existiu porque o devido detalhamento só veio pela CCEE no bojo de sua contribuição à CP (peça 75, p. 25):

(...) Foi proposto para a CP que a CCEE atue como agregadora dos dados de medição de consumidores varejistas, com o que concordamos. A Neoenergia gostaria apenas de destacar que, após o encerramento da presente CP e em se mantendo essa orientação, é imprescindível que a ANEEL abra novo processo de participação pública para discutir as alterações nas Regras e Procedimentos de Comercialização que serão necessárias para definir o detalhamento de todo esse processo de agregação.

Além disso, posição externada pela Abradee em sua contribuição à CP 28/2023 avalia que o incremento substancial na quantidade de unidades consumidoras do Grupo A aptas e demonstrando interesse em migrar para o mercado livre, associado a uma nova demanda de atividades de medição e envio de informações à CCEE para agregação de dados e contabilização irão acarretar custos adicionais à distribuidora, cujos impactos não foram adequadamente dimensionados pela Aneel e MME (peça 72, p. 30):

(...) a depender do procedimento de medição a ser implementado junto à CCEE, a distribuidora pode ter novas responsabilidades que acarretem custos adicionais aos atuais e que, portanto, devem ter tratamento adequado para não provocar desequilíbrios econômico-financeiros à distribuidora. Nesse sentido, o serviço de leitura e medição realizado para o Comercializador Varejista, deveria, assim como proposto para a suspensão de fornecimento, ser um serviço cobrável do Comercializador Varejista ('leitura e envio de medição'), a ser realizado pela distribuidora.

Mais uma vez, repisa-se, trata-se de dimensão de avaliação dos impactos de uma série de medidas de adequação de procedimentos, mudanças regulatórias, novos fluxos de informação e atividades atribuídas aos agentes do setor elétrico que deixaram de ser adequadamente dimensionadas, em razão da não realização de Avaliação de Impacto Regulatório. No entanto, como foi proposto encaminhamento para essa questão nos itens 213 e 214 do presente relatório, entende-se suficiente o tratamento ali sugerido.

Assim, diante do exposto, propõe-se dar ciência à Aneel, nos termos do art. 9º, inciso I, da Resolução-TCU 315/2020, de que a realização de Consulta Pública para aperfeiçoamento regulatório do comercializador varejista e simplificação do processo de migração para o mercado livre, sem todos os elementos relativos ao 'novo processo estrutural de acesso ao mercado livre', detalhado pela CCEE em sua contribuição à CP 28/2023, está em contrariedade ao que determina o §3º do art. 9º da Lei 13.848/2019.

Padronização do procedimento de migração.

A REN 1.000/2021 estabelece que o consumidor que deseja migrar para o ambiente livre de contratação deve denunciar o contrato com a sua distribuidora em um prazo de pelo menos 180 dias de antecedência da data pretendida de migração.

Decorre que o atual arcabouço regulatório se restringe, ao regulamentar a relação com a distribuidora no processo de migração, a esta disposição sobre o prazo de denúncia. Assim, não discorre sobre obrigações entre as partes, sobre a documentação necessária ou os prazos internos para serem cumpridos esse procedimento.

Como consequência dessa lacuna normativo-regulatória, diversas são as reclamações de agentes que desejam migrar para o ambiente livre de contratação. Os consumidores relatam diversas dificuldades na relação com as distribuidoras para viabilizar a migração.

Nesse viés, a Abraceel, em contribuição à CP 28/2023, apresentou relato de diversas dificuldades enfrentadas por suas associadas no processo de migração para o mercado livre (Peça 76):

(...) Em suma, 148 casos de 20 associadas foram coletados, e cerca de 90% dos problemas relatados estão relacionados ao relacionamento e ao processo de denúncia contratual que ocorre com as distribuidoras. Entre as causas que mais contribuem para essa problemática, são apontados:

· Exigência desnecessária de documentação e processos (27%);

· Descumprimento de prazos pelas distribuidoras (19%);

· Comunicação com a distribuidora (15%); - Falta de informação dos contratos cativos (8%); e - Adequação de medição descabida (8%), entre outros.

Assim, a Associação destaca que '7 em cada 10 dos problemas estão relacionados a exigências desnecessárias, descumprimento de prazos, dificuldade de comunicação e adequação de medição'.

Por sua vez, a Associação Brasileira das Empresas Geradoras de Energia Elétrica (Abrage), também no âmbito da CP 28/2023, relatou problemas com a migração para o mercado livre. Segundo a associação, os problemas estariam ocorrendo em função do descumprimento de prazos ou imposições excessivas, que vão desde exigência desnecessária de documentações e processos até obrigação descabida de adequação da medição (peça 77).

Recentemente, no foro da Tomada de Subsídios Aneel 14/2023, que trata da Agenda Regulatória da Agência para o ciclo 2024/2025, a Abraceel voltou a se pronunciar sobre o aprimoramento do processo de migração.

Na ocasião, a associação se expressou pela importância da padronização do processo de migração, no sentido de dar eficiência ao processo e reduzir a burocracia e os custos de todas as partes envolvidas.

De fato, a padronização do processo de migração tem o condão de evitar arbitrariedades por parte das distribuidoras, conceder segurança e previsibilidade aos consumidores e reduzir custos envolvidos no processo de migração.

Ademais, tomando em consideração o relato dos diversos agentes do setor, notório que a situação atual da regulação não é suficiente para garantir segurança ao processo, resultando em riscos relevantes às partes envolvidas e ao próprio processo de abertura do mercado.

No contexto de entrada de grande número de novos consumidores, com o advento da Portaria 50/2022 e do avanço da comercialização varejista, é necessária a remoção de possíveis óbices ao poder de escolha dos potenciais novos entrantes.

De acordo com os princípios expostos na CF/88 e na Lei da Liberdade Econômica, os agentes a quem faz menção a Portaria 50/2022, independentemente de sua posição geográfica, devem ter o poder de exercer o direito concedido pelo normativo de forma equânime. Assim, a situação evidenciada resultaria em descumprimento do princípio Constitucional da isonomia.

Ante o exposto e levando em consideração as razões expostas pela Aneel em seus comentários à versão preliminar do Relatório (peça 108, Análise dos Comentários do Gestor), sugerese recomendar à Agência Nacional de Energia Elétrica, nos termos do inciso II do art. 250 do Regimento Interno do TCU, que adote providências no sentido de priorizar o aprimoramento previsto na Agenda Regulatória 2024-2025 que trata da padronização e simplificação do processo de migração para o ACL, de forma a evitar a discrepância de exigências, procedimentos e prazos entre as distribuidoras e assim contribuir para o acesso isonômico ao mercado livre.

III.4. Aspectos de Segurança de Mercado, Competição Efetiva, Proteção e Tratamento dos Dados no Âmbito da Comercialização Varejista

Este tópico trata das análises e achado da quarta questão de auditoria do presente trabalho de fiscalização: A atuação dos órgãos competentes - formulador de política (MME), regulador/fiscalizador (Aneel) e do operador de mercado (CCEE) - é adequada e suficiente para garantir a segurança do mercado livre e a competição justa no âmbito da comercialização varejista, considerando a próxima fase da abertura do mercado e a expansão do número de consumidores livres e de comercializadores?

Durante a execução do trabalho, de forma a fazer melhores análises e dar mais clareza aos assuntos, foram realizados dois procedimentos de auditoria, dividindo a questão em dois macrotemas: (i) a segurança do mercado livre e seu monitoramento; e (ii) a efetividade da competição no mercado varejista.

Como achado, foram identificadas fragilidades no tratamento dos riscos relevantes à competição efetiva e à eficiência de mercado na comercialização varejista, à proteção aos consumidores e ao tratamento de seus dados.

Segurança do Mercado Livre e seu Monitoramento

Garantir a segurança do mercado livre de energia elétrica é objetivo perseguido pelos diversos agentes que compõem a governança do Setor Elétrico Brasileiro (SEB).

Nesse sentido, o Decreto 11.492/2023, que dispõe sobre a estrutura regimental e sobre as competências dos órgãos do MME, atribui em seus art. 24 e 25 competências relacionadas à segurança de mercado à Secretaria Nacional de Energia Elétrica e ao Departamento de Políticas para o Mercado.

Adicionalmente, destaca-se a responsabilidade do MME, prevista na Lei 4.904/1965, de formulação, direção e execução da política nacional nos assuntos referentes a minas e energia.

Por sua vez, a Lei 9.427/1996 atribui à Aneel, no seu art. 3º, competências de: propiciar concorrência efetiva entre os agentes e impedir concentração econômica (inc. VIII); zelar pelo cumprimento da legislação de defesa da concorrência, monitorando e acompanhamento das práticas de mercado dos agentes do setor (inc. IX) e aprovar as regras e os procedimentos de comercialização de energia elétrica contratada na forma regulada e livre (inc. XIV).

Prosseguindo, a CCEE, nos termos do art. 4º da Lei 10.848/2004, tem finalidade de viabilizar a comercialização de energia elétrica. Neste sentido, também tem responsabilidade na garantia da segurança do mercado livre de energia.

Tal segurança do ambiente de comercialização de energia elétrica é interesse de todos os agentes envolvidos, sejam eles comercializadores ou consumidores. Os responsáveis por manter a saúde do ambiente contam com ferramentas como o monitoramento, e a sua abordagem prudencial, para atingir esse objetivo.

Os agentes do SEB têm a oportunidade de buscar fontes de conhecimento em outros mercados estabelecidos, como o mercado de energia em outros países e o mercado financeiro brasileiro, para buscar boas práticas que possam ser aplicadas ao contexto do setor no âmbito da garantia da segurança de mercado.

Riscos associados à Segurança de Mercado

A atividade de comercialização de energia elétrica, como em qualquer outra área de livre iniciativa, possui riscos associados aos sujeitos, que por sua conta (e risco), dispõem-se a participar do mercado.

Os riscos associados à atividade podem levar os agentes a quebras e falências, como em qualquer outra atividade comercial. Esses eventos têm importância na disciplina do sistema e no expurgo de instituições insolventes do mercado.

Na presente análise, não trataremos dos riscos individuais tomados por consumidores e comercializadores livres de energia, mas sim de riscos sistêmicos que podem representar desequilíbrios estruturais no ambiente livre de contratação.

Risco Sistêmico de Inadimplência

De acordo com o Comitê de Bancos da Basiléia, risco sistêmico é aquele em que a inadimplência de uma instituição para honrar seus compromissos contratuais pode gerar uma reação em cadeia, atingindo grande parte do sistema financeiro.

Para o SEB, características como a forte dependência da hidrologia na formação de preços podem resultar em flutuações bruscas nos preços de energia, eventualmente expondo o mercado a elevados níveis de risco, a depender da posição contratada dos agentes.

A reação em cadeia e o contágio causado por grandes agentes inadimplentes sobre o mercado é evento que já foi verificado em mercados livres de energia, no Brasil e internacionalmente.

Como exemplos podemos citar a crise do GSF (Generation Scaling Factor), em 2015, a quebra das comercializadoras Vega e Linkx, em 2018 e a falência de várias comercializadoras varejistas no Reino Unido em 2022, no contexto da crise de combustíveis na Europa e da guerra da Ucrânia.

O risco sistêmico é assunto exaustivamente estudado no âmbito de mercados financeiros, com o desenvolvimento de modelos de regulação prudencial para a sua mitigação.

No caso do mercado livre de energia, o endereçamento do risco sistêmico de inadimplência foi o mote da Consulta Pública 11/2022 da Aneel, que instituiu como produto o período sombra do monitoramento prudencial.

Monitoramento de Mercado

Para assegurar a segurança de mercado, os responsáveis dispõem, dentre outras ferramentas, da atividade de monitoramento do mercado de energia elétrica.

A atividade de monitoramento de mercado, conforme exposto no website da CCEE, consiste em 'identificar e analisar ações dos agentes que eventualmente estejam em desacordo com a legislação ou representem condutas incompatíveis com as boas práticas comerciais'.

Não obstante a definição exposta, que indica a própria atividade em sentido estrito desempenhada pela Câmara, monitorar o mercado possui significado amplo. O monitoramento pode se traduzir também no acompanhamento do mercado por meio da publicação periódica de informações e relatórios que subsidiam a avaliação da sua segurança.

Exemplo da atividade em sentido mais amplo é a publicação, pela CCEE, dos boletins 'Informercado' quinzenal e mensal. Nos relatórios, há comunicação ao mercado de resultados consolidados das operações e a exposição de dados gerais sobre o SEB.

Desta forma, o relatório não se restringe apenas à apresentação de informações sobre comercialização de energia, mas aborda também pontos desde níveis de geração, nível de consumo e sua evolução e até breve análise dos dados pela própria Câmara.

A publicação dessas informações concede transparência a comercializadores de energia, a consumidores livres e aos órgãos públicos responsáveis pela formulação e implementação de políticas públicas (MME e Congresso Nacional) e pela regulação e fiscalização do setor (Aneel).

Outro exemplo de desempenho da função de monitoramento é a atuação do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE). A criação do CMSE foi autorizada pelo art. 14 da Lei 10.848/2004, com função precípua de acompanhar e avaliar permanentemente a continuidade e a segurança do suprimento eletroenergético em todo o território nacional. O Comitê é composto por diversos agentes do setor, entre eles o MME, a Aneel e a CCEE.

A Resolução CMSE 01/2016, ao aprovar o Regimento Interno do Comitê, elencou como uma de suas atribuições 'acompanhar o desenvolvimento das atividades de geração, transmissão, distribuição, comercialização, importação e exportação de energia elétrica, gás natural e petróleo e seus derivados.'

O desempenho da função de monitorar a comercialização de energia elétrica pode ser verificada por meio das atas das reuniões ordinárias do comitê.

De maneira exemplificativa, destacamos o conteúdo da ata da 275ª Reunião Ordinária, de

15/3/2023 (peça 78). No tópico 4 - 'Monitoramento da Comercialização de Energia Elétrica', o colegiado discorre inicialmente sobre apresentação da CCEE sobre panorama da liquidação financeira no mercado de Curto Prazo (MCP). São assuntos também abordados o montante do GSF não repactuado que se encontrava sobre efeito de liminar judicial. Na ocasião, ficou registrado pela CCEE a necessidade de endereçamento da situação.

Do exemplo, fica ilustrado que o CMSE acompanha e monitora assuntos relevantes à segurança do mercado e à comercialização, baseando-se em informações técnicas providas pela CCEE, um de seus integrantes.

Ainda que a atuação do Comitê possa ser verificada, é tímida quando comparada à atuação do órgão no que se refere ao acompanhamento das condições de abastecimento eletroenergético do país.

Ao acompanhar as condições de abastecimento, o comitê tem atribuição de autorizar o despacho fora da ordem de mérito, decisão importante e que impacta diretamente a operação e os preços.

Já no acompanhamento da comercialização, restringe-se a apreciação de informações gerais do mercado providas pela CCEE. Não costuma se debruçar sobre possíveis riscos e disfunções na comercialização, nem sobre as ações e atividades desenvolvidas pelos agentes no sentido de garantir mais segurança ao mercado.

Prosseguindo, torna-se a discorrer sobre a atividade de monitoramento de mercado em sentido mais estrito, que se encontra disciplinada atualmente na Resolução Normativa Aneel 957/2021 (REN 957/2021) e em procedimentos de comercialização da CCEE.

Conforme exposto anteriormente, o monitoramento é atividade essencial para garantir a segurança de mercado e mitigar o risco sistêmico associado à inadimplência de agentes, além de permitir a identificação de ações e condutas anômalas no mercado e mitigar os riscos associados.

A Convenção de Comercialização prevista no § 6º do art. 1º da Lei 10.848/2004, encontra-se disciplinada atualmente por meio da Resolução Normativa Aneel 957/2021. A atividade de monitoramento de mercado está disciplinada nos arts. 135 a 137 da REN 957/2021.

Preliminarmente, o parágrafo único do art. 135 conceitualiza a atividade de monitoramento de mercado e atribui a atividade à CCEE. O art. 136 atribui à Câmara a responsabilidade de envio mensal de informações sobre o mercado à Aneel. Por sua vez, o art. 137 trata sobre o envio anual da CCEE à Aneel de relatório relativo às atividades de monitoramento de mercado.

Do exposto, destaca-se o papel central concedido à CCEE na condução da atividade de monitoramento.

Complementarmente, a atividade de monitoramento encontra-se detalhada no submódulo 1.7 dos procedimentos de comercialização da Câmara. O procedimento, aprovado pela Aneel, apresenta detalhamento do processo de monitoramento no âmbito da CCEE.

No submódulo é expresso que: 'o monitoramento tem como finalidade aumentar a segurança, transparência e confiança nas operações nele realizadas, trazendo benefícios não somente aos agentes nas relações comerciais, mas também aos demais participantes do mercado, às instituições do setor elétrico e à sociedade'.

Ainda, diversas premissas são relacionadas no tópico 3 do submódulo, versando sobre as responsabilidades dos agentes, envio de relatos sobre situações relevantes para o mercado por meio da Central de Monitoramento, formas de atuação da CCEE e outros detalhes do processo.

Aprimoramentos na atividade e a Consulta Pública 11/2022

Em 2020, a CCEE encaminhou à Aneel propostas formais visando o aperfeiçoamento dos procedimentos referentes ao monitoramento do mercado de energia elétrica. Posteriormente, a Agência abriu a Consulta Pública 11/2022 (CP 11/2022), com objetivo de obter subsídios para o aprimoramento do processo.

A proposição da Câmara era de uma abordagem prudencial para o monitoramento do mercado de energia elétrica, de forma semelhante à realizada em mercados financeiros.

A abordagem prudencial para o monitoramento permite a avaliação tanto dos níveis de alavancagem dos players do mercado quanto do risco sistêmico de inadimplência. A CCEE ressalta que a adoção de uma abordagem prudencial de monitoramento é fundamental para o aumento da segurança comercial e financeira das operações do mercado de comercialização de energia elétrica (peça 79, p. 3).

A CP 11/2022 contou com duas fases (com previsão de uma possível terceira), e resultou na publicação da Resolução Normativa Aneel 1072/2023 (REN 1072/2023) e do Manual de Monitoramento Prudencial. Os produtos da CP instituíram formalmente o monitoramento prudencial do mercado.

A REN 1072/2023 incluiu os arts. 135-A a 135-D na REN 957/2021, instituindo o período sombra do monitoramento prudencial.

O art. 135-A atribuiu a condução do monitoramento prudencial à CCEE e determinou a vigência do período sombra, além de prever a aprovação pela Aneel de nova versão do módulo 'Cálculo do Monitoramento Prudencial'.

Também condicionou eventuais ajustes ao Manual de Monitoramento Prudencial a despacho da Superintendência de Regulação dos Serviços de Geração e do Mercado de Energia Elétrica (SGM), o que se entende ser um procedimento simplificado, com objetivo de dar celeridade ao processo de ajuste.

O art. 135-B lista as informações que devem ser encaminhadas pelos agentes à CCEE, para fins do Monitoramento prudencial. O §1º determina a periodicidade de envio das informações, sendo mensal para consumidores livres e especiais e semanal para os outros agentes.

O art. 135-C sujeita os agentes que não encaminharem as informações às penalidades previstas nos incisos XIII e XIV do art. 17 da REN 957/2021. Destaca-se que o artigo é aplicável já no período sombra do monitoramento.

Por fim, o art. 135-D prevê a verificação mensal pela CCEE das informações encaminhadas no âmbito do Monitoramento Prudencial de até 10% dos agentes a cada 12 meses. O §2º determina o envio, pela CCEE, após 12 meses (fim do período sombra), de proposta de Procedimentos de Comercialização tratando da verificação dessas informações.

A REN 1072/2023 estabelece em seu art. 3º que, após 12 meses, a CCEE deverá encaminhar à Aneel os estudos e avaliações realizados para fins de estabelecimento dos parâmetros necessários ao Monitoramento Prudencial, bem como estudos que abordem a possibilidade de simplificação do processo e do tratamento diferenciado por tipo e porte de agente.

Destaca-se o fato de que a resolução foi publicada em agosto, com início de sua vigência apenas em 1º/11/2023. O Vacatio Legis de três meses foi motivado, nos documentos que instruíram a edição do normativo, pela necessidade dos agentes do mercado se organizarem para os novos fluxos processuais de monitoramento.

Ante o exposto, é possível concluir que, embora existam riscos inerentes ao mercado livre de energia elétrica, os órgãos responsáveis pela governança do SEB têm demonstrado diligência e proatividade na gestão desses riscos e na melhoria contínua do processo de monitoramento de mercado. Destaca-se então que a situação atual não se constitui em um achado de auditoria, uma vez que os órgãos estão cumprindo suas responsabilidades e buscando ativamente aprimorar suas práticas para garantir a segurança do mercado.

Achado 4 - Fragilidades no tratamento dos riscos relevantes à competição efetiva e à eficiência de mercado na comercialização varejista, à proteção aos consumidores e ao tratamento de seus dados

Situação encontrada:

Foram identificadas falhas no tratamento de riscos relevantes à competição efetiva na comercialização varejista, sendo estes a falta de previsão de avaliação sistemática quanto às condições de competição, a assimetria de informação entre os comercializadores e os consumidores representados e o tratamento inadequado de dados dos consumidores de energia elétrica, havendo prejuízo à eficiência do mercado varejista, possibilidade de formação de concentração de mercado e possibilidade de ocorrência de condutas vedadas pela Lei de Defesa da Concorrência e pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). A situação decorre de fragilidade na regulação atual que trata da comercialização varejista, na ausência de avaliação do mercado varejista e na fiscalização ineficaz pelos órgãos responsáveis.

Análise

Comercialização varejista

A comercialização varejista foi institucionalizada no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei 14.120/2021, ao incluir o art. 4º-A na Lei 10.848/2004:

Art. 4º-A. A comercialização no ambiente de contratação livre poderá ser realizada mediante a comercialização varejista, conforme regulamento da Aneel, caracterizada pela representação, por agentes da CCEE habilitados, das pessoas físicas ou jurídicas a quem seja facultado não aderir à CCEE.

A atividade encontra-se normatizada no âmbito da Aneel pelas REN 957/2021, REN 1.000/2021, REN 1.009/2022 e REN 1.011/2022. Ainda, é objeto do Submódulo 1.6 dos Procedimentos de Comercialização da CCEE.

A atividade de comercialização varejista ganha relevância, e um aumento considerável em seu escopo, no contexto da entrada em vigência da Portaria MME 50/2022 em janeiro de 2024, na medida que se faculta a todos os consumidores do Grupo A (alta e média tensão) a compra de energia no Ambiente de Contratação Livre.

De acordo com essa portaria, os consumidores com carga individual inferior a 500 kW serão representados por agentes varejistas perante a CCEE. Desta forma, o mercado potencial para o varejo é vultuoso, considerando a quantidade de unidades consumidoras enquadradas nessa condição.

Dada a conjuntura, aprimoramentos regulatórios relacionados à comercialização varejista estão sendo discutidas na Aneel no âmbito da Consulta Pública 28/2023.

A tendência é que, com a intensificação das discussões relativas à possível abertura do mercado para consumidores de baixa tensão (Grupo B) e, com a obrigatoriedade de representação destes por agentes varejistas, o mercado de varejo ganhe ainda mais relevância e precise de acurada avaliação contínua.

Pelos riscos associados à atividade e por representar consumidores de menor porte, que não possuem capacidade de autorrepresentação, o agente varejista está submetido a condições de habilitação e requisitos para manutenção da autorização mais restritivos quando comparado aos agentes que atuam no mercado do atacado.

Tal opção regulatória se justifica pois o agente varejista pode representar maior risco sistêmico ao mercado livre de energia. A rigidez nos requisitos de habilitação e operação é forma de evitar que agentes com menor porte de capital, que teriam menor capacidade de suportar perdas consideráveis e maior risco de falência, entrem no mercado. Os requisitos regulatórios também servem para baixar mandatoriamente o nível de risco tomado pelos comercializadores em seus modelos de negócio.

A CCEE expressou a necessidade de adequação dos requisitos de habilitação para a comercialização varejista, consideradas as alterações regulatórias da REN 1.011/2022, causadas pela REN 1.014/2022, que implementou a figura do Comercializador Tipo 1, e pela implementação do monitoramento prudencial (Peça 43, p.6).

Os comercializadores do Tipo 1 são aqueles que não possuem limitação para registro de montantes de venda no Sistema de Contabilização e Liquidação da CCEE (inciso I, art. 2º, da REN 1.011/2022). Serão classificados como Tipo 1 os comercializadores que apresentem à CCEE patrimônio líquido de, no mínimo, R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais). Ainda, para a manutenção da autorização, o comercializador do Tipo 1 deve atestar anualmente o patrimônio líquido de no mínimo R$ 10.000,000,00 (dez milhões de reais) à CCEE.

A título comparativo, os comercializadores Tipo 2 sujeitam-se apenas ao requisito de possuir capital social integralizado de, no mínimo, R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais).

Neste sentido, a CCEE informou que propôs, no âmbito da CP 28/2023, a equiparação das condições de habilitação para comercializadores varejistas àquelas estabelecidas para o comercializador Tipo 1, pela necessidade de aplicação de critérios mais restritivos por representarem consumidores de menor porte (peça 43, p. 6).

Ademais, propôs a adequação da exigência de certos documentos, como os requisitos de aptidão técnica e a dispensa do balanço energético, em razão da implementação do Monitoramento Prudencial (peça 43, p. 6).

Destaca-se que esse ponto específico não figurou entre os aprimoramentos apresentados inicialmente pela Aneel na Nota Técnica 76/2023-SGM/ANEEL, documento que abriu a CP 28/2023.

Ainda que exista tal descompasso na regulação atual, esta equipe de auditoria entende que o fato não se constitui como achado, por já existirem em geral condições de habilitação mais restritivas aos varejistas na regulação atual.

Acompanhamento das condições de competição no mercado varejista

A competição efetiva é condição basilar para que o mercado varejista ofereça os benefícios a que se propõe, quais sejam a melhoria da eficiência do mercado livre de energia, o empoderamento do consumidor e a diminuição dos custos finais de energia elétrica.

Neste sentido, a Lei 12.529/2011 estruturou o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) e dispôs sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico. Em seu título V, a lei apresenta as infrações à ordem econômica e as penalidades cabíveis aos responsáveis pelas condutas.

De acordo com art. 26 da Lei 13.848/2019, incumbe às agências reguladoras monitorar e acompanhar as práticas de mercado dos agentes dos setores regulados, de forma a auxiliar os órgãos de defesa da concorrência na observância do cumprimento da legislação de defesa da concorrência. O art. 27 determina que quando a agência reguladora, no exercício de suas atribuições, tomar conhecimento de fato que possa configurar infração à ordem econômica, deverá comunicá-lo imediatamente aos órgãos de defesa da concorrência para que esses adotem as providências cabíveis.

Concernente ao setor elétrico, a Aneel, nos termos dos incisos VIII e IX do art. 3º da Lei 9.427/1996, é responsável por zelar pela legislação de defesa da concorrência e agir de forma a propiciar concorrência efetiva entre os agentes e a impedir a concentração econômica nos serviços e atividades de energia elétrica.

Para garantir a competição efetiva, no entanto, é necessária a instituição de mecanismos de acompanhamento e avaliação das condições de competição do setor. Ressalta-se, por exemplo, que para mitigar o risco sistêmico de inadimplência no mercado livre de energia, a Aneel, em esforço conjunto com a CCEE, realiza a atividade de acompanhamento, por meio das ferramentas de Monitoramento e, mais recentemente, pela nova abordagem de Monitoramento Prudencial, instituída de maneira 'sombra' para 2024, pela REN 1072.

Para auxiliar nessa avaliação, o órgão regulador deve dispor de métricas e indicadores, boas práticas e exemplos de relatórios e metodologias já elaboradas e implementadas internacionalmente.

Pela necessidade de aprofundar a análise, e, tendo em vista a atualidade do assunto no contexto brasileiro, foram estudadas experiências de mercados livres de energia internacionais que tratam sobre avaliação das condições de competição do mercado varejista e sobre proteção e empoderamento dos consumidores de energia (Apêndice B).

Tornar-se-á a alguns desses documentos nos próximos tópicos de análise acerca da proteção dos consumidores e do tratamento correto de seus dados.

Da análise realizada, depreende-se que países que possuem mercados livres de energia em estágios mais avançados, como é o caso do Reino Unido e, em geral, dos países membros da União Europeia, reconheceram a importância da competição efetiva no mercado do varejo e empenham-se em esforços para acompanhar e avaliar as condições de seus mercados, de maneira sistemática e periódica.

No entanto, no contexto da abertura de mercado vigente no Brasil, não foi possível identificar previsão de avaliação ou acompanhamento sistemático das condições de competição do mercado varejista.

Analisando a proposta de alteração regulatória em discussão na CP 28/2023, bem como a Agenda Regulatória da Aneel para o biênio 2024-2025, conclui-se que não há previsão de ação de acompanhamento das condições da competição do mercado varejista de energia elétrica no Brasil.

Esta equipe de Auditoria solicitou à Aneel, por meio do Ofício 0098/2023TCU/Audelétrica (peça 40), informações sobre a existência de mecanismos/ações/atividades previstas no atual arcabouço regulatório (ou atualmente em discussão) que teriam como objetivo evitar a concentração de mercado e outras práticas anticoncorrenciais no mercado varejista.

Em sua resposta (peça 46), a Agência fez remissão a duas resoluções normativas. A Resolução Normativa 948, de 16/11/2021, no seu Módulo II - Análise de atos de concentração e infrações à ordem econômica no setor de energia elétrica -, estabelece os procedimentos para análise de atos de concentração e infrações à ordem econômica no setor de energia elétrica. Por sua vez, a Resolução Normativa 846, de 11/6/2019, estabelece que constituem infração impedir ou dificultar, por ação ou omissão, a avaliação acerca de ato de concentração (Grupo IV) e praticar conduta que atente contra a concorrência efetiva, o desenvolvimento normal das operações do mercado de energia elétrica ou a ordem econômica (Grupo V).

Não obstante a importância dos atos normativos no contexto da manutenção da competição efetiva no setor de energia elétrica, estes não tratam sobre ações fiscalizatórias concretas ou sobre sistemática de acompanhamento perene das condições de competição do mercado de varejo. Desta forma, as resoluções refletem-se em critérios, na medida em que atribuem responsabilidades ao regulador, não consistindo-se em ações por si.

Sem um acompanhamento adequado, não é possível identificar e corrigir possíveis distorções ou restrições à concorrência, o que pode levar a um mercado pouco competitivo e com preços elevados, indo de encontro ao objetivo da política pública de abertura do mercado.

Além disso, o acompanhamento das condições de competição é importante para proteger os interesses dos consumidores. A competição efetiva no mercado varejista de energia elétrica permite que os consumidores tenham acesso a uma variedade de opções de fornecedores e planos de energia, o que lhes dá a possibilidade de escolher a oferta que melhor atenda a suas necessidades e preferências. Sem um acompanhamento adequado, os consumidores podem ficar sujeitos a práticas abusivas, como preços excessivos, ou falta de transparência nas informações fornecidas pelos fornecedores.

Ademais, o acompanhamento das condições de competição também é importante para garantir um ambiente de negócios justo e equilibrado. A competição saudável estimula a inovação, a eficiência e a qualidade dos serviços oferecidos pelos comercializadores varejistas. Sem um acompanhamento adequado, pode haver a concentração de mercado em poucos agentes dominantes, o que pode levar a práticas anticompetitivas, como a formação de cartéis ou o abuso de posição dominante.

Portanto, a falta de acompanhamento das condições da competição no mercado varejista de energia elétrica pode ter consequências negativas tanto para o mercado quanto para os consumidores. É fundamental que sejam adotadas medidas efetivas de acompanhamento e avaliação da competição, a fim de garantir um mercado varejista de energia elétrica eficiente, competitivo e que atenda aos interesses dos consumidores.

A Consulta Pública 28/2023, da Aneel, é o fórum mais recente para a discussão de aprimoramentos regulatórios relativos à comercialização varejista. No entanto, a Nota Técnica 76/2023-SGM/ANEEL (peça 70), que elenca os aprimoramentos regulatórios a serem debatidos na CP, não dispõe sobre avaliação da competição do mercado varejista.

Dessa feita, propõe-se recomendar à Aneel, nos termos do inciso III do art. 250 do Regimento Interno do TCU, que, em conformidade com as atribuições normativas previstas nos incisos VIII e IX do art. 3º da Lei 9.427 e nos arts. 25 a 27 da Lei 13.848/2019, e, de forma a endereçar o risco de competição inefetiva no mercado varejista: i) estabeleça formalmente sistemática de acompanhamento periódico para avaliar as condições competitivas do mercado varejista e a efetividade da competição; e ii) elabore estudo para determinar quais os aprimoramentos regulatórios e medidas fiscalizatórias necessárias para garantir o adequado tratamento dos dados dos consumidores em conformidade com o previsto na LGPD.

Recentemente, por meio da Nota Técnica 17/2024 - SFF/ANEEL, de 8/2/2024, a Agência promoveu estudos no sentido de propor linhas de ação adequadas às novas atribuições da SFF de monitoramento e fiscalização de mercado, em especial em relação a análise da concorrência e atos de concentração econômica no setor de energia, em virtude da reorganização administrativa da Aneel.

Nessa Nota Técnica, no item 'III.2.10 - Da comercialização de energia elétrica no mercado livre', a área técnica analisa alguns dos riscos relacionados à assimetria de informações e possíveis medidas para favorecer a concorrência e evitar o abuso do poder de mercado na comercialização de energia no mercado livre. Cabe apontar, no entanto, que os encaminhamentos indicados pela Nota Técnica são no sentido de constituir 'frentes de atuação' no âmbito da SFF para discutir a implantação de ferramentas que melhorem a capacidade de análise da Aneel sobre a concorrência e concentração econômica, bem como eventuais melhorias normativas no campo da comercialização de energia.

Não foram, ainda, delineadas ações concretas para instrumentalizar o monitoramento de mercado a ser realizado pela SFF, ainda que algumas das frentes de atuação convirjam para a mesma direção da análise presente neste Relatório, especialmente no que toca a elaboração de 'Relatórios analíticos periódicos' com diagnóstico da concorrência e concentração econômica, conforme citado no item 'd' da Conclusão da mencionada Nota Técnica.

Nesse sentido, entende-se que as conclusões da NT 17/2024 são coerentes com o teor da recomendação do item 428 acima, representando um desenvolvimento no sentido do cumprimento da eventual recomendação. Contudo, ante a ausência de ações concretas ou de regulação estabelecendo processos e obrigações de fiscalização, entendemos pela manutenção do encaminhamento.

Proteção dos consumidores de energia, assimetria de informações e tratamento de dados

A posição dos consumidores obrigatoriamente representados por agentes varejistas (com demanda inferior a 500 kW) é distinta daqueles que possuem a capacidade de representação direta na CCEE. Tais consumidores constituem-se primariamente de negócios de menor porte quando comparados àqueles que já operam na CCEE.

Diferentemente da realidade dos grandes consumidores de energia, que ordinariamente contam com especialistas, setores internos ou consultorias para avaliar os riscos associados à compra de energia no Ambiente Livre de Contratação, os consumidores varejistas, aqueles que serão representados por comercializadoras varejistas, em sua maioria, não possuem o mesmo conhecimento sobre o setor elétrico ou plena capacidade de avaliar a complexidade do mercado de energia elétrica e os riscos a ele associados.

Desta forma, tal preocupação foi expressa pela Aneel na Nota Técnica 10/2022 - SRM/ANEEL. A Nota técnica foi editada no âmbito da Tomada de Subsídios (TS) 10/2021, que tratou das medidas regulatórias necessárias para a abertura de mercado para consumidores com carga menor que 500 kW.

No documento (peça 54), o item III.7 trata especificamente da necessidade de proteção de consumidores residenciais em negócios de energia. A Agência buscou subsídios para decidir se haveria necessidade de tratamento regulatório específico para proteção desses consumidores.

Na oportunidade, o debate promovido pelos diversos stakeholders não se resume apenas a esse segmento de consumidores, mas se estende a consumidores menores do grupo A, com carga inferior a 500 kW.

Dentre as contribuições dos agentes do setor, várias foram no sentido da necessidade de orientar o consumidor sobre o processo de abertura do mercado. A Aneel elencou os seguintes itens como medidas regulatórias necessárias para abertura do mercado livre para consumidores com carga inferior a 500 kW (peça 54, p. 36-37):

(i) realização de campanhas de esclarecimento e conscientização dos consumidores;

(ii) indicar que os fornecedores varejistas tenham um produto padrão divulgado na internet, de modo a permitir a simulação e comparação de produtos razoavelmente padronizados, em ambientes de confiança, que garantam uma escolha consciente dos custos, benefícios e riscos envolvidos;

(iii) criar regulamentação contra abusos de poder de mercado e acesso à informação dos consumidores, no caso de grupos econômicos que possuam distribuidoras e agentes de comercialização no mercado livre;

(iv) determinar que os comercializadores de energia para consumidores residenciais estabeleçam canais de atendimento acessíveis e atuem como disseminadores de informação, contribuindo para a capacitação dos consumidores à nova realidade;

A seguir, serão tratados o estágio de discussão das medidas 'i', 'ii', que abordam diretamente sobre o risco da assimetria de informação entre consumidores e comercializadores.

Por sua relevância e escopo, a proteção dos dados e o acesso à informação dos consumidores (item 'iii') será discutido em seção separada, tendo em vista que esse tema se relaciona tanto com a proteção do consumidor como com a defesa da concorrência, podendo ainda ter desdobramentos relacionados à possível inconformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), Lei 13.709/2018.

Como a medida 'iv' é bastante específica para o mercado de consumidores de baixa tensão, entende-se que não se aplicaria no escopo da presente análise, que trata sobre a abertura promovida pela Portaria MME 50/2022.

Medida (i): Realização de campanhas de esclarecimento e conscientização dos consumidores;

A realização de campanhas de esclarecimento e conscientização dos consumidores tem o condão de reduzir a assimetria de informação entre estes e os comercializadores varejistas.

Ressalta-se que a redução dessas assimetrias causa benefícios a própria eficiência do mercado. Consumidores bem-informados sobre riscos e sobre os diferentes produtos ofertados pelos fornecedores tomam melhores decisões ao firmar seus contratos.

Neste sentido foram várias as contribuições dos stakeholders no âmbito da TS Aneel 10/2021.

A Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica) opinou pela necessidade de ampla campanha de esclarecimento e conscientização do processo de abertura do mercado, de forma antecipada, para que os consumidores pudessem estudar o assunto até o momento que a migração seria implementada (Peça 54, p. 163).

Semelhantemente, a Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel) considerou relevantes as campanhas de conscientização e a definição de estratégias de divulgação e publicidade, para prover informação simples e precisas para o consumidor sobre a possibilidade de troca de fornecedores de energia (peça 54, p. 163).

Por sua vez, a Associação Brasileira dos Produtores Independentes de Energia (Apine) argumenta que a adesão ao mercado livre envolve riscos que terão que ser assumidos por quem optar pela migração. Assim, seriam necessárias campanhas de esclarecimento para evitar que consumidores sejam induzidos a realizar a migração sem o conhecimento pleno dos riscos envolvidos e das condições de suprimento a que estarão submetidos (peça 54, p. 165).

De maneira contrária, alguns agentes, como a Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace), entenderam não serem necessárias medidas regulatórias especificas de proteção ao consumidor (Peça 54, p. 163).

Destaca-se que o Projeto de Lei 414/2021 (anterior PLS 232/2016), que tramita no Senado Federal e traz disposições sobre a ampla liberalização do mercado livre de energia, prevê em seu texto que o plano de abertura do mercado deverá conter ações de comunicação para conscientização dos consumidores visando à sua atuação em um mercado liberalizado (inciso I, parágrafo único do art. 15-A, a ser incluído na Lei 9.074/1995).

A equipe de auditoria, por meio do Ofício 75/2023-TCU/Audelétrica (peça 22), questionou o MME sobre seu papel em relação à necessidade de campanhas informativas sobre o funcionamento do mercado livre e riscos associados para novos consumidores, com o objetivo de reduzir a assimetria de informações.

O Ministério, em sua resposta (peça 38), pontuou que a abertura promovida pela Portaria MME 50/2022 foca no Grupo A, cujas regras de contratação, medição e faturamento são mais sofisticadas do que as aplicáveis aos consumidores do Grupo B. Assim, o MME não vislumbraria a necessidade de uma ampla campanha informativa custeada com recursos públicos.

Deve-se ressaltar, nesse ponto, que a ação julgada como necessária à abertura pela Aneel englobava todos os consumidores com carga inferior a 500 kW, não apenas o grupo de baixa tensão (Grupo B).

Sobre a justificativa ministerial do uso de recursos públicos para fazer ampla campanha informativa, cabe destacar que ações de conscientização para clientes que podem migrar para o mercado livre podem ter baixo custo de implementação.

Exemplos de ações com baixo custo de implementação são: criação de conteúdo digital informativo, utilizando-se de vídeos, podcasts, infográficos, artigos; parcerias com associações de consumidores para disseminar informações; guias online; uso de plataformas e-learning e seminários online.

Também foi questionado à Aneel, por meio do Ofício 0098/2023-TCU/Audelétrica (peça 40), sobre previsão de tomada de ações no sentido de promover a redução de assimetria de informação entre o comercializador varejista e os potenciais consumidores representados.

A Agência respondeu (peça 46) que as informações sobre o assunto estariam na CP 28/2023, dando como exemplo de ação a instituição da obrigatoriedade de disponibilização de produto padrão pelos comercializadores varejistas em seus sítios eletrônicos.

Apesar de ser uma ação que tende a reduzir a assimetria de informação, permitindo a comparabilidade entre fornecedores, a medida não abarca a educação de consumidores quanto ao funcionamento do mercado livre e outras nuances.

Considerando o exposto e a importância da tomada de decisão bem-informada pelos consumidores para a produção dos benefícios do mercado livre, sugere-se recomendar ao MME que, em conjunto com a Aneel e a CCEE, nos termos do inciso III do art. 250 do Regimento Interno do TCU, desenvolva e implemente uma estratégia de comunicação eficaz e abrangente para informar e conscientizar os consumidores sobre o funcionamento do mercado livre de energia e os riscos associados à migração.

Medida (ii): Indicar que os fornecedores varejistas tenham um produto padrão divulgado na internet, de modo a permitir a simulação e comparação de produtos razoavelmente padronizados, em ambientes de confiança, que garantam uma escolha consciente dos custos, benefícios e riscos envolvidos.

Essa ação vai no sentido de empoderamento e proteção dos consumidores e redução da assimetria de informação. Tem o objetivo de garantir que os benefícios do mercado livre sejam efetivamente observados pelo consumidor final de energia. Ainda, tem efeitos positivos na própria garantia de condições efetivas de competição no mercado varejista.

Neste sentido, a Resolução Normativa Aneel 1.011/2022 indicou como um dos critérios para a comercialização varejista que todos os produtos padronizados ofertados por varejista devem ser divulgados em seu portal eletrônico, com descrição detalhada, modelos de contratos, preços e condições.

Apesar de ser um avanço regulatório, o regulador não apontou, na referida resolução, quais elementos deveriam ser padronizados, dificultando a persecução dos objetivos de transparência e comparabilidade pretendidas com a medida.

O problema foi apontado pela Aneel na Consulta Pública 28/2023, que trata de aprimoramentos regulatórios referentes à comercialização varejista. A Agência então expôs entendimento de que é necessário que o varejista deva publicizar em seu portal eletrônico, no mínimo, um modelo de contrato padrão de vigência anual que seja ofertado ao público, prevendo distribuição do volume com sazonalização e modulação flat (peça 70, p. 14).

Por conseguinte, o inciso XI do art. 13 da REN 1.011/2022 passaria a ter o seguinte teor:

Art. 13. Para a comercialização varejista, no âmbito da CCEE, devem ser observados os seguintes critérios:

(...)

XI - todos os produtos padronizados ofertados por varejista devem ser divulgados em seu no portal eletrônico do varejista, com descrição detalhada, modelos de contratos, preços e condições para produtos com sazonalização e modulação uniforme (flat).

Destaca-se que a CP 28/2023 ainda não foi concluída, e as propostas dos agentes no âmbito da consulta não foram apreciadas pela Agência. Desta forma, há possibilidade de mudanças na redação final do dispositivo.

A publicação de produtos padronizados por comercializadoras varejistas em seus portais eletrônicos, conforme estabelecido pela Resolução Normativa 1.011/2022, é um passo significativo para a promoção da transparência e da proteção dos consumidores no mercado de energia. No entanto, é importante ressaltar que essa medida, embora necessária, pode não ser suficiente para garantir a efetiva comparação entre as ofertas disponíveis no mercado.

A padronização de produtos e a divulgação de informações detalhadas sobre contratos, preços e condições são medidas que contribuem para a redução da assimetria de informação, um problema comum em mercados complexos como o de energia. No entanto, a efetiva comparação entre as ofertas disponíveis no mercado requer mais do que apenas a disponibilização de informações. É necessário que essas informações sejam apresentadas de forma clara, objetiva e padronizada, permitindo que os consumidores possam comparar as ofertas de diferentes varejistas de forma rápida e fácil.

Nesse sentido, a criação de uma ferramenta de comparação centralizada, disponível em um website independente, poderia ser uma solução mais eficaz para garantir a comparabilidade das ofertas. Essa ferramenta poderia reunir as informações sobre os produtos oferecidos por diferentes varejistas, apresentando-as de forma padronizada e permitindo que os consumidores possam comparar as ofertas de forma rápida e fácil.

Esse website poderia ser desenvolvido tanto pelo órgão regulador como por terceiro creditado por este como independente.

Além disso, essa ferramenta poderia incluir funcionalidades que auxiliem os consumidores na tomada de decisão, como a possibilidade de filtrar as ofertas de acordo com diferentes critérios (por exemplo, preço, condições de contrato, etc.), a disponibilização de informações adicionais sobre cada varejista (por exemplo, avaliações de outros consumidores, histórico de reclamações, etc.) e a possibilidade de realizar simulações para estimar o impacto de diferentes ofertas na conta de energia do consumidor.

A criação de uma ferramenta de comparação centralizada também poderia contribuir para a promoção da competição no mercado de energia, ao facilitar a entrada de novos varejistas e ao incentivar a inovação e a diferenciação das ofertas. Além disso, ao facilitar o acesso à informação e a comparação entre as ofertas, essa ferramenta poderia contribuir para o empoderamento dos consumidores, permitindo que eles possam fazer escolhas mais informadas e, consequentemente, contribuir para a eficiência do mercado.

Países como Inglaterra, Portugal, Austrália e Estados Unidos, que possuem mercados de energia em estágios mais avançados, possuem ferramentas robustas de comparação entre fornecedores de energia no varejo, de forma a subsidiar a decisão final do consumidor e a facilitar a escolha do melhor produto para o seu interesse.

No entanto, é importante ressaltar que a criação de uma ferramenta de comparação centralizada requer a definição de critérios claros e objetivos para a apresentação das informações, a garantia de que as informações apresentadas sejam atualizadas e precisas, e a implementação de medidas para garantir a independência e a imparcialidade da ferramenta. Além disso, é necessário que essa ferramenta seja de fácil acesso e uso para todos os consumidores, independentemente de seu nível de conhecimento sobre o mercado de energia.

Ante o exposto, sugere-se recomendar à Aneel, nos termos do inciso III do art. 250 do Regimento Interno do TCU, que estude a possibilidade de implementar uma ferramenta de comparação centralizada, disponível em um website independente, para facilitar a comparação entre as ofertas de produtos padronizados oferecidos por comercializadores varejistas de energia.

Acredita-se que essa ferramenta poderia contribuir significativamente para a promoção da transparência e da proteção dos consumidores, ao permitir que eles possam comparar as ofertas de diferentes varejistas de forma rápida e fácil. Além disso, essa ferramenta poderia contribuir para a promoção da competição no mercado de energia, ao facilitar a entrada de novos varejistas e ao incentivar a inovação e a diferenciação das ofertas. Ainda, a medida pode beneficiar as próximas fases da abertura de mercado, tendo o potencial de subsidiar os consumidores do grupo B com informações para escolha de seus fornecedores, reduzindo a assimetria de informação.

Tratamento de dados

A proteção dos dados dos consumidores de energia elétrica é de suma importância por uma série de razões. Em primeiro lugar, os dados dos consumidores são informações pessoais sensíveis que, se mal utilizadas ou expostas, podem levar a violações de privacidade e danos tangíveis e intangíveis aos consumidores e ao mercado. Ainda, a proteção dos dados dos consumidores é uma obrigação legal para as empresas de energia elétrica. As violações dessas obrigações podem resultar em penalidades significativas, incluindo multas e danos à reputação.

No que tange ao setor elétrico e ao mercado livre de energia elétrica, esclarecedora a reprodução do que dispõe a Diretriz EU 944/2019 (peça 80), regulamento aplicável aos países do grupo europeu.

Inicialmente, a diretriz menciona que são responsabilidades das agências reguladoras: contribuir para garantir que as medidas de proteção dos consumidores são eficazes e postas em prática (item r, art. 59º); publicar recomendações, com frequência mínima anual, sobre a conformidade dos preços de comercialização (item s, art. 59º); e assegurar o acesso não discriminatório aos dados de consumo dos clientes (item t, art. 59º).

O texto apresenta também importantes disposições sobre a gestão e o tratamento dos dados dos consumidores de energia. Inicialmente, o diploma preceitua que os Estados-Membros devem especificar regras sobre o acesso aos dados dos clientes finais de energia pelas partes elegíveis (art. 23).

Ao tratar sobre as atividades de distribuição, a diretriz dispõe que os Estados-Membros devem garantir que todas as partes elegíveis têm acesso não discriminatório aos dados em condições claras e equitativas, nos termos das regras da União aplicáveis no domínio da proteção dos dados.

Apresenta também tratamento ao risco de a distribuidora fazer parte de grupo econômico verticalmente integrado, que seria o caso em que um grupo econômico tenha sob seu controle, por exemplo, uma distribuidora e uma comercializadora.

Neste caso, preceitua o normativo que a distribuidora deveria ser independente pelo menos em termos de forma jurídica, organização e tomada de decisões, de outras atividades não relacionadas com a distribuição.

São elencados critérios mínimos para garantir a independência da distribuidora, entre eles a elaboração de um programa de conformidade que enuncie as medidas adotadas para garantir a exclusão de comportamentos discriminatórios e o monitoramento adequado da sua observância (item '2.d', art.35).

Por fim, é exposto que, no caso de distribuidoras que pertençam a grupos econômicos que possuem outras atividades sob seu controle, os Estados-Membros devem assegurar que as suas atividades sejam monitoradas pelas entidades reguladoras ou outros organismos competentes, de modo que não possa tirar proveito da sua integração vertical para distorcer a concorrência. Em particular, os operadores de redes de distribuição verticalmente integrados não podem, nas suas comunicações e imagens de marca, criar confusão no que diz respeito à identidade distinta do ramo de comercialização da empresa verticalmente integrada (item 3, art.35).

Fica claramente exposto nas disposições da Diretriz a importância do adequado tratamento de dados dos consumidores, os riscos relacionados a dados envolvidos na atividade de distribuição e o risco de empresas verticalmente integradas que possuem distribuidoras e comercializadores sob seu controle.

A terceira medida apresentada pela Aneel como necessária no âmbito da proteção dos consumidores e necessária à abertura do mercado para consumidores com carga inferior à 500 kW:

(iii) criar regulamentação contra abusos de poder de mercado e acesso à informação dos consumidores, no caso de grupos econômicos que possuam distribuidoras e agentes de comercialização no mercado livre;

Na disposição, a Agência identificou e apresentou, desde o início do processo que culminou na Portaria MME 50/2022, a preocupação com o risco relativo ao acesso à informação dos consumidores.

Preliminarmente, no que tange à proteção de dados, as distribuidoras devem cumprir integralmente o disposto na Lei 13.709/2018 - LGPD.

Nesse sentido, a Resolução Normativa 1.000/2021, que estabelece as regras de Prestação do Serviço Público de Distribuição de Energia Elétrica, estabelece, em seu art. 659, §3º, que os dados pessoais do consumidor e demais usuários serão coletados, armazenados, tratados, transferidos e utilizados exclusivamente nos termos do disposto na Lei 13.709, de 14/8/2018.

Paralelamente, o MME vem debatendo o tema no âmbito do processo de discussão das concessões de distribuição vincendas. Apresentou, dentre as diretrizes para renovação das concessões, o seguinte dispositivo (Nota Técnica 14/2023-SAER-SE, Peça 83):

4.3.0.15. Seguindo, a fim de convergir com a legislação sobre proteção de dados de usuários, constante da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, insere-se cláusula de proteção dos dados e compartilhamento com terceiros.

Esperam-se assim desdobramentos sobre o tema naquele fórum de discussão, com possíveis avanços no sentido de uma melhor gestão de dados de consumidores e do Open Energy, conceito que serão abordados posteriormente.

Adicionalmente, esta equipe de auditoria questionou a Aneel sobre qual forma a Agência atua, ou pode atuar, para evitar que comercializadoras do mesmo grupo econômico de distribuidoras tenham vantagens anticoncorrenciais na captura de consumidores migrantes.

O regulador apresentou informações (peça 46) de que sua atuação ocorre com os mecanismos já existentes, sendo estes: (i) a necessidade da estrita observância da legislação pelos agentes; (ii) ações de fiscalização junto às concessionárias de distribuição; e (iii) denúncias recebidas na Ouvidoria e na Ouvidoria Setorial.

Ademais, informou que, no contexto das ações de fiscalização, a Aneel pode atuar na fiscalização da distribuição e comercialização de energia elétrica em busca da identificação de condutas de agentes que venham porventura a atentar contra a concorrência efetiva e o desenvolvimento normal das operações do mercado de energia elétrica.

Ainda, expôs que tem sido estruturado processo de monitoramento das práticas dos agentes do setor de energia elétrica e da comercialização de energia elétrica, com foco em melhorias normativas e processuais, nos termos da Portaria 6.811, de 24/4/2023. Os estudos e análises, à medida de seu desenvolvimento, serão incluídos no contexto da discussão com a sociedade.

Por fim, mencionou que a fiscalização também passa pelo recebimento de reclamações e denúncias, com eventual enquadramento em tipificação estabelecida na Resolução Normativa 846/2019.

A resposta da Aneel ao ofício, embora tenha citado suas atribuições e mecanismos de atuação, não apresentou ações concretas de fiscalização da situação de risco encontrada. A Agência mencionou a necessidade de estrita observância da legislação pelos agentes, ações de fiscalização junto às concessionárias de distribuição e denúncias recebidas na Ouvidoria e na Ouvidoria Setorial. No entanto, não foram especificadas quais ações de fiscalização foram ou serão realizadas para garantir a proteção dos dados dos consumidores de energia elétrica.

A Agência apresentou, na Nota Técnica 76/2023-SGM/ANEEL (peça 70), que abriu a CP 28/2023, proposta para que a CCEE atue como centralizadora de todas as informações relacionadas à migração de consumidores para o ACL representados por agentes varejistas. A centralização das informações pertinentes em sistema de informação próprio da CCEE foi justificada considerando os diversos interessados atuantes na comercialização varejista, tais como as distribuidoras, o ONS, os agentes varejistas, a Aneel, a CCEE, além dos próprios consumidores.

A medida foi bem recebida pelos stakeholders do setor, o que pode ser verificado no teor das contribuições à Consulta pública. A gestão de dados de maneira centralizada pode ser o primeiro passo de evolução em direção ao conceito de Open Energy no mercado livre de energia elétrica do Brasil.

O Open Energy é um conjunto de regras e tecnologias para permitir, com consentimento do consumidor, o acesso aos seus dados por diferentes fornecedores de energia. A prática carrega benefícios na modernização do setor, criação de soluções individuais e empoderamento do consumidor de energia.

Desta forma, necessário que os agentes institucionais do setor, especialmente o órgão regulador, estudem a possibilidade de implementação dessa solução no contexto de abertura de mercado.

Ante a situação exposta, sugere-se recomendar à Aneel, nos termos do inciso III do art. 250 do Regimento Interno do TCU, que:

i) estabeleça plano de ação de fiscalização para verificar a situação das empresas verticalizadas no setor de energia elétrica (que atuem nas atividades de distribuição e comercialização), incluindo a identificação de possíveis práticas anticompetitivas e a verificação do cumprimento das normas de proteção de dados pelos agentes do setor;

ii) explore possíveis aprimoramentos regulatórios que visem melhorar o tratamento de dados dos consumidores pelas distribuidoras de energia elétrica, incluindo a elaboração de normas específicas para o setor de energia elétrica, que levem em consideração suas particularidades e desafios;

iii) estude a implementação do conceito de Open Energy no mercado livre de energia elétrica, de forma similar ao que ocorre no setor bancário com o open banking, considerando as particularidades do setor elétrico.

IV. ANÁLISE DOS COMENTÁRIOS DOS GESTORES

Em conformidade com o item 145 das Normas de Auditoria do Tribunal de Contas da União (NAT), aprovadas pela Portaria TCU 280/2010, alterada pela Portaria TCU 185/2020, e em observância ao disposto no art. 14 da Resolução TCU 315/2020, a versão preliminar deste Relatório (peça 84) foi encaminhada a todos os órgãos fiscalizados (peças 87 a 89 e 91), com a finalidade de obter os comentários dos respectivos gestores acerca do teor das constatações efetuadas na presente fiscalização.

A coleta de comentários objetivou conceder aos gestores oportunidade para apresentar informações adicionais que eventualmente pudessem existir, bem como eventuais argumentos cuja finalidade fosse a de reformar a análise empreendida na fiscalização, em relação às constatações efetuadas. Com exceção da CCEE, todos os demais órgãos fiscalizados enviaram comentários (peças 99, 100 e 102).

As informações e esclarecimentos apresentados e entendidos como pertinentes foram incorporados diretamente nesta versão final do relatório. Os demais comentários e as razões para o seu não acolhimento são apresentados à peça 108 dos autos.

V. CONCLUSÃO

Este Relatório de Acompanhamento tem como objetivo avaliar o processo de abertura gradual do mercado de energia elétrica, verificando se há tratamento adequado para os riscos sistêmicos identificados por stakeholders do setor, com foco específico nos atos, medidas e riscos que podem impactar a etapa de abertura que ocorreu a partir de 1º/1/2024, quando os consumidores do Grupo A com demanda inferior a 500 kW foram autorizados a migrar para o ACL.

A partir dos objetivos da fiscalização, e após os estudos pertinentes na fase de planejamento, foram elaboradas quatro questões de auditoria:

Questão I - O processo de abertura de mercado tem governança institucionalizada, indicação de objetivos, atribuição de competências, interlocução institucional estruturada e sistemática de avaliação das medidas?

Questão II - A abertura de mercado definida pela Portaria MME 50/2022 obedece aos princípios da legalidade, razoabilidade, transparência e motivação, tendo sido precedida das análises pertinentes de impacto, medidas necessárias de mitigação de riscos, adequação normativa com o ordenamento jurídico e regras do Setor Elétrico?

Questão III - O arcabouço normativo-regulatório que trata sobre migração de consumidores ao mercado livre e sobre comercialização varejista é adequado para suportar a expansão do mercado livre com o advento da Portaria MME 50/2022?

Questão IV - A atuação dos órgãos competentes - formulador de política (MME), regulador/fiscalizador (Aneel) e do operador de mercado (CCEE) - é adequada e suficiente para garantir a segurança do mercado livre e a competição justa no âmbito da comercialização varejista, considerando a próxima fase da abertura do mercado e a expansão do número de consumidores livres e de comercializadores?

Quanto à Questão 1, foi possível identificar que a abertura de mercado não possui um grau de institucionalização plena, apenas parcial. Ainda que existam normativos relevantes sobre o assunto, com algumas atribuições e competências parcialmente definidas, não há um marco normativo único que defina a abertura de mercado do ponto de vista de política pública, com objetivos gerais e específicos, estratégias e definição de papéis institucionais de forma coordenada e coerente. Foram identificadas também lacunas em relação à coordenação institucional contínua e cooperação das entidades envolvidas na implementação da abertura de mercado.

No Achado 1, verificou-se a inexistência de sistemática de avaliação dos resultados das ações tomadas no processo de abertura de mercado, decorrentes da ausência de indicadores de desempenho e da inércia em proceder com avaliações, resultando em baixo grau de conhecimento da efetividade do processo de abertura, desconhecimento do nível dos efeitos adversos sobre o ACR e em outros possíveis riscos não mitigados, em desacordo com o disposto no Decreto 9.203/2017 e com boas práticas de avaliação de políticas públicas presentes no Referencial de Controle de Políticas Públicas do TCU.

Em relação a este achado, propõe-se recomendar ao MME, nos termos do inciso III do art. 250 do Regimento Interno do TCU, que, em conformidade com as atribuições normativas correlatas à avaliação de resultados previstas para seus órgãos singulares no Decreto 9.675/2019, e de forma a conformar-se com os princípios e diretrizes da governança pública explicitados no Decreto 9.203/2017, apresente: i) os objetivos da política de abertura gradual do mercado de energia elétrica, bem como avaliação de resultados e dos impactos causados pelas medidas presentes nas Portarias MME 514/2018 e 465/2019, em especial quanto a: (i) redução dos custos de energia, explicitando premissas e metodologia; e (ii) impactos financeiros causados no Ambiente de Contratação Regulada decorrentes das referidas medidas; e ii) metodologia de avaliação de resultados para a abertura a ser promovida pela Portaria MME 50/2022 e próximas fases, contendo: metas e indicadores, responsabilidades, premissas e cronograma avaliativo.

Quanto à Questão 2, verificou-se que a fase atual do processo de abertura de mercado determinada pela Portaria MME 50/2022 possui, do ponto de vista formal, fundamentação jurídica e tem se desenvolvido de acordo com os princípios da razoabilidade e da transparência, em seus aspectos gerais. No entanto, a flexibilização da adesão de consumidores da alta tensão remanescentes (Grupo A com carga inferior a 500 kW) ao mercado livre de energia traz em seu bojo riscos relacionados à alocação de custos no ACR, cujas medidas mitigadoras associadas não foram integralmente adotadas.

No Achado 2, foram identificadas fragilidades no processo de análise técnica que resultou na Portaria MME e fundamentação de dispensa de Avaliação de Impacto Regulatório (AIR). Verificou-se que riscos sistêmicos identificados em estágios anteriores de discussão técnica setorial não foram mitigados ou considerados de forma efetiva no processo de análise e decisão do MME, como a sobrecontratação e a necessidade de aperfeiçoamento de mecanismos de gestão de portfólio das distribuidoras. Além disso, a dispensa de realização de AIR não considerou em sua justificativa a possibilidade de impactos e custos decorrentes dos aperfeiçoamentos regulatórios envolvendo os temas de agregação de medição, atividades de corte/suspensão, envio e troca de informações para sistema de gestão da CCEE, que não foram adequadamente dimensionados.

Nesse sentido, para este achado propõe-se determinar ao MME, nos termos do inciso II do art. 250 do Regimento Interno do TCU, em conjunto com a Agência Nacional de Energia Elétrica, a elaboração, no prazo de cento e vinte dias, de Plano de Ação para: (i) verificar o nível de contratação das distribuidoras, por área de concessão; (ii) estimar o impacto financeiro causado ao Ambiente de Contratação Regulada (ACL) consequente das migrações de consumidores ao Ambiente de Contratação Livre (ACL), desde o início da vigência da Portaria 514/2018; (iii) de posse das estimativas, verificar a conformidade legal das migrações ao §5º do art.15 da Lei 9074/1995; (iv) em caso de inconformidade legal, proceder com as medidas necessárias para garantir o estrito cumprimento legal.

Ademais, propõe-se recomendar ao MME, nos termos do inciso III do art. 250 do Regimento Interno do TCU: i) a realização, no ano de 2024, da Avaliação de Resultado Regulatório (ARR) previsto pelo Comitê Permanente de Avaliação de Impacto Regulatório (CPAIR), para avaliar os resultados e impactos da abertura de mercado para o Grupo A; e ii) a realização, no prazo de 180 dias, de Avaliação de Impacto Regulatório (AIR) ou estudos de impacto que possam subsidiar medidas legislativas (projetos de lei ou medidas provisórias) previamente às medidas de flexibilização necessárias para a abertura de mercado do Grupo B.

Além disso, entende-se pertinente dar ciência ao MME, nos termos do art. 9º, inciso I, da Resolução-TCU 315/2020, de que a dispensa de Avaliação de Impacto Regulatório (AIR) em processo de abertura de mercado para consumidores do Grupo A com carga inferior a 500 kW em que há, no mínimo, dúvidas razoáveis quanto à possibilidade de impactos regulatórios advindos de riscos não completamente mitigados como a sobrecontratação das distribuidoras, ineficácia de mecanismos de gestão de portfólios e previsão de novas atividades para agentes do setor decorrentes de adequações substantivas no modelo de migração e adesão ao mercado livre, está em desconformidade com o disposto no art. 5º da Lei 13.874/2019.

Em relação à Questão 3, verificou-se que o arcabouço normativo atual que trata sobre a comercialização varejista e o processo de migração para o ambiente de contratação livre, ainda que possua instrumentos capazes de sustentar o processo de migração em curso, não é adequado para o movimento de massificação de adesões ao ACL iniciado em janeiro de 2024, com consumidores de menor porte necessariamente representados por comercializadores varejistas. Nesse sentido, é relevante o processo da Consulta Pública Aneel 28/2023, que trata de aperfeiçoamento regulatório para a comercialização varejista e simplificação do processo de migração, mas que foi concluído apenas a poucas semanas do marco inicial da nova fase de migrações de consumidores do Grupo A.

Dessa forma, ficou caracterizado o Achado 3, que consiste na intempestividade do aperfeiçoamento regulatório da comercialização varejista para permitir a migração em janeiro de 2024. Conforme analisado, embora houvesse previsão para tratamento do tema no início de 2023 segundo a agenda regulatória da Aneel, a CP 28/2023 só foi publicada no segundo semestre do ano e foi concluída pela Agência apenas em 12/12/2023, portanto cerca de duas semanas antes de vigorar a nova fase da abertura de mercado para o Grupo A; assim, não houve garantia de tempo hábil ou razoável para implementação das mudanças no arcabouço regulatório recém instituído, considerando eventuais ajustes necessários e assimilação de novos processos por parte dos agentes do setor, de modo a evitar riscos relevantes no processo de migração, tanto para consumidores, quanto para comercializadores, distribuidoras e mercado como um todo.

Cabe ainda destacar que a nota técnica de abertura da CP 28/2023 não apresentou detalhes operacionais sobre agregação de medição e simplificação do processo de migração ao ACL, que só foram explicitados no estudo técnico contido no documento da contribuição da CCEE à Consulta Pública, ao qual os agentes do setor só tiveram acesso após a fase de envio de contribuições.

Dessa forma, em relação ao achado em questão propõem-se os seguintes encaminhamentos:

a) dar ciência ao MME e à Aneel, nos termos do art. 9º, inciso I, da Resolução-TCU 315/2020, de que a inércia em promover os aprimoramentos regulatórios decorrentes da Portaria MME 50/2022 apresenta uma série de riscos ao Setor Elétrico Brasileiro, não apenas aos consumidores que podem optar pela migração para o ACL, mas para os demais consumidores e agentes de distribuição; além de comprometer a previsibilidade necessária ao bom funcionamento do mercado.

b) dar ciência à Aneel, nos termos do art. 9º, inciso I, da Resolução-TCU 315/2020, de que a realização de Consulta Pública para aperfeiçoamento regulatório do comercializador varejista e simplificação do processo de migração para o mercado livre, sem todos os elementos relativos ao 'novo processo estrutural de acesso ao mercado livre', detalhado pela CCEE em sua contribuição à CP 28/2023, está em contrariedade ao que determina o §3º do art. 9º da Lei 13.848/2019.

c) recomendar à Aneel, nos termos do inciso III do art. 250 do Regimento Interno do TCU, que, adote providências no sentido de priorizar o aprimoramento previsto na Agenda Regulatória 2024-2025 que trata da padronização e simplificação do processo de migração para o ACL, de forma a evitar a discrepância de exigências, procedimentos e prazos entre as distribuidoras e assim contribuir para o acesso isonômico ao mercado livre.

d) recomendar ao MME, nos termos do inciso III do art. 250 do Regimento Interno do TCU, que realize estudos e análises para definir a viabilidade e necessidade de se criar, por meio de proposta legislativa/normativa, a figura do Supridor de Última Instância (SUI) no processo de liberalização gradativa do mercado de energia no Brasil, definindo suas características, atribuições e contornos jurídico-regulatórios, para posterior regulamentação pela Aneel.

No tocante à Questão 4, que trata da atuação das entidades para garantir a segurança do mercado e ambiente de competição justa no âmbito da comercialização varejista, identificou-se iniciativas importantes dos órgãos de governança do setor na direção de aperfeiçoar a gestão de riscos de segurança de mercado e ações de monitoramento do mercado, com ênfase para a regulamentação da abordagem de Monitoramento Prudencial do mercado de comercialização de energia, com propostas de diversos aperfeiçoamentos regulatórios e procedimentais no âmbito da CP Aneel 11/2022.

Entretanto, foram identificadas fragilidades no tratamento de riscos relevantes à competição efetiva e à eficiência de mercado, à proteção e tratamento dos dados de consumidores na comercialização varejista (Achado 4).

Para este Achado, foram propostos os seguintes encaminhamentos:

e) recomendar à Aneel, nos termos do inciso III do art. 250 do Regimento Interno do TCU, que, em conformidade com as atribuições normativas previstas nos incisos VIII e IX do art.

3º da Lei 9.427 e nos arts. 25 a 27 da Lei 13.848/2019, e, de forma a endereçar o risco de competição inefetiva no mercado varejista: i) estabeleça formalmente sistemática de acompanhamento periódico para avaliar as condições competitivas do mercado varejista e a efetividade da competição; e ii) elabore estudo para determinar quais os aprimoramentos regulatórios e medidas fiscalizatórias necessárias para garantir o adequado tratamento dos dados dos consumidores em conformidade com o previsto na LGPD.

f) recomendar ao MME que, em conjunto com a Aneel e a CCEE, nos termos do inciso III do art. 250 do Regimento Interno do TCU, desenvolva e implemente uma estratégia de comunicação eficaz e abrangente para informar e conscientizar os consumidores sobre o funcionamento do mercado livre de energia e os riscos associados à migração

g) recomendar à Aneel, nos termos do inciso III do art. 250 do Regimento Interno do TCU, que estude a possibilidade de implementar uma ferramenta de comparação centralizada, disponível em um website independente, para facilitar a comparação entre as ofertas de produtos padronizados oferecidos por comercializadores varejistas de energia

h) recomendar à Aneel, nos termos do inciso III do art. 250 do Regimento Interno do TCU, que:

i) estabeleça plano de ação de fiscalização para verificar a situação das empresas verticalizadas no setor de energia elétrica (que atuem nas atividades de distribuição e comercialização), incluindo a identificação de possíveis práticas anticompetitivas e a verificação do cumprimento das normas de proteção de dados pelos agentes do setor; ii) explore possíveis aprimoramentos regulatórios que visem melhorar o tratamento de dados dos consumidores pelas distribuidoras de energia elétrica, incluindo a elaboração de normas específicas para o setor de energia elétrica, que levem em consideração suas particularidades e desafios; iii) estude a implementação do conceito de Open Energy no mercado livre de energia elétrica, de forma similar ao que ocorre no setor bancário com o open banking, considerando as particularidades do setor elétrico.

VI. PROPOSTA DE ENCAMINHAMENTO

Ante o exposto, sugere-se o encaminhamento dos autos para a manifestação do Ministério Público junto ao TCU, conforme requerido à peça 19 e autorizado pelo Relator à peça 103, e posterior envio ao Gabinete do Exmo. Ministro-Relator Antonio Anastasia, com as seguintes propostas:

522.1 Determinar ao Ministério de Minas e Energia, nos termos do inciso II do art. 250 do Regimento Interno do TCU, em conjunto com a Agência Nacional de Energia Elétrica, a elaboração, no prazo de cento e vinte dias, de Plano de Ação para: (i) verificar o nível de contratação das distribuidoras, por área de concessão; (ii) estimar o impacto financeiro causado ao Ambiente Regulado de Contratação consequente das migrações de consumidores ao ACL, desde o início da vigência da Portaria 514/2018; (iii) de posse das estimativas, verificar a conformidade legal das migrações ao §5º do art.15 da Lei 9074/1995; (iv) em caso de inconformidade legal, proceder com as medidas necessárias para garantir o estrito cumprimento legal. (item 194)

522.2 Recomendar ao Ministério de Minas e Energia, nos termos do inciso III do art. 250 do Regimento Interno do TCU:

i) em conformidade com as atribuições normativas correlatas à avaliação de resultados previstas para seus órgãos singulares no Decreto 9.675/2019, e de forma a conformar-se com os princípios e diretrizes da governança pública explicitados no Decreto 9.203/2017, apresente:

a. os objetivos da política de abertura gradual do mercado de energia elétrica, bem como avaliação de resultados e dos impactos causados pelas medidas presentes nas Portarias MME 514/2018 e 465/2019, em especial quanto a: (i) redução dos custos de energia, explicitando premissas e metodologia; e (ii) impactos financeiros causados no

Ambiente de Contratação Regulada decorrentes das referidas medidas; (item 109)

b. metodologia de avaliação de resultados para a abertura a ser promovida pela Portaria MME 50/2022 e próximas fases, contendo: metas e indicadores, responsabilidades, premissas e cronograma avaliativo. (item 109)

ii) a realização, no ano de 2024, da Avaliação de Resultado Regulatório (ARR) previsto pelo Comitê Permanente de Avaliação de Impacto Regulatório (CPAIR), para avaliar os resultados e impactos da abertura de mercado para o Grupo A; (item 213)

iii) a realização, no prazo de 180 dias, de Avaliação de Impacto Regulatório (AIR) ou estudos de impacto que possam subsidiar medidas legislativas (projetos de lei ou medidas provisórias) previamente às medidas de flexibilização necessárias para a abertura de mercado do Grupo B. (item 213)

iv) em conjunto com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), desenvolva e implemente uma estratégia de comunicação eficaz e abrangente para informar e conscientizar os consumidores sobre o funcionamento do mercado livre de energia e os riscos associados à migração. (item 458)

v) realize estudos e análises para definir a viabilidade e necessidade de se criar, por meio de proposta legislativa/normativa, a figura do SUI no processo de liberalização gradativa do mercado de energia no Brasil, definindo suas características, atribuições e contornos jurídico-regulatórios, para posterior regulamentação pela Aneel. (item 292)

522.3 Dar ciência ao MME, nos termos do art. 9º, inciso I, da Resolução-TCU 315/2020, de que a falta de avaliação quanto aos impactos causados ao ambiente de contratação regulado, decorrentes da migração de consumidores para o ambiente de contratação livre, pode resultar no descumprimento do disposto no §5º do Art. 15 da Lei 9.074/1995. (item 195)

522.4 Dar ciência ao MME, nos termos do art. 9º, inciso I, da Resolução-TCU 315/2020, de que a dispensa de Avaliação de Impacto Regulatório (AIR) em processo de abertura de mercado para consumidores do Grupo A com carga inferior a 500 kW em que há, no mínimo, dúvidas razoáveis quanto à possibilidade de impactos regulatórios advindos de riscos não completamente mitigados como a sobrecontratação das distribuidoras, ineficácia de mecanismos de gestão de portfólios e previsão de novas atividades para agentes do setor decorrentes de adequações substantivas no modelo de migração e adesão ao mercado livre, está em desconformidade com o disposto no art. 5º da Lei 13.874/2019. (item 214)

522.5 Dar ciência ao Ministério de Minas e Energia e à Agência nacional de Energia Elétrica, nos termos do art. 9º, inciso I, da Resolução-TCU 315/2020, que a inércia em promover os aprimoramentos regulatórios decorrentes da Portaria MME 50/2022 apresenta uma série de riscos ao Setor Elétrico Brasileiro, não apenas aos consumidores que podem optar pela migração para o ACL, mas para os demais consumidoras e agentes de distribuição; além de comprometer a previsibilidade necessária ao bom funcionamento do mercado. (item 290)

522.6 Recomendar à Agência Nacional de Energia Elétrica, nos termos do inciso III do art. 250 do Regimento Interno do TCU:

i) adote providências no sentido de priorizar o aprimoramento previsto na Agenda Regulatória 2024-2025 que trata da padronização e simplificação do processo de migração para o ACL, de forma a evitar a discrepância de exigências, procedimentos e prazos entre as distribuidoras e assim contribuir para o acesso isonômico ao mercado livre. (item 338)

ii) que, em conformidade com as atribuições normativas previstas nos incisos VIII e IX do art. 3º da Lei 9.427 e nos arts. 25 a 27 da Lei 13.848/2019, e, de forma a endereçar o risco de competição inefetiva no mercado varejista:

a. estabeleça formalmente sistemática de acompanhamento periódico para avaliar as condições competitivas do mercado varejista e a efetividade da competição; (item

428)

b. elabore estudo para determinar quais os aprimoramentos regulatórios e medidas fiscalizatórias necessárias para garantir o adequado tratamento dos dados dos consumidores em conformidade com o previsto na LGPD. (item 428)

iii) que estude a possibilidade de implementar uma ferramenta de comparação centralizada, disponível em um website independente, para facilitar a comparação entre as ofertas de produtos padronizados oferecidos por comercializadores varejistas de energia. (item 473)

iv) estabeleça plano de ação de fiscalização para verificar a situação das empresas verticalizadas no setor de energia elétrica (que atuem nas atividades de distribuição e comercialização), incluindo a identificação de possíveis práticas anticompetitivas e a verificação do cumprimento das normas de proteção de dados pelos agentes do setor; (item 501)

v) explore possíveis aprimoramentos regulatórios que visem melhorar o tratamento de dados dos consumidores pelas distribuidoras de energia elétrica, incluindo a elaboração de normas específicas para o setor de energia elétrica, que levem em consideração suas particularidades e desafios; (item 501)

vi) estude a implementação do conceito de Open Energy no mercado livre de energia elétrica, de forma similar ao que ocorre no setor bancário com o open banking, considerando as particularidades do setor elétrico. (item 501)

522.7 Dar ciência à Aneel, nos termos do art. 9º, inciso I, da Resolução-TCU 315/2020, de que a realização de Consulta Pública para aperfeiçoamento regulatório do comercializador varejista e simplificação do processo migração para o mercado livre, sem todos os elementos relativos ao 'novo processo estrutural de acesso ao mercado livre', detalhado pela CCEE em sua contribuição à CP 28/2023, está em contrariedade ao que determina o §3º do artigo 9º da Lei 13.848/2019. (item 326)

522.8 Nos termos do art. 8º da Resolução-TCU 315, de 2020, fazer constar, na ata da sessão em que estes autos forem apreciados, comunicação do relator ao colegiado no sentido de monitorar todas as recomendações que vierem a ser expedidas no bojo deste processo de Acompanhamento, nos termos do §2º do art. 17 da Resolução TCU 315/2020 e item 26 do Manual de Acompanhamento, anexo da Portaria-Segecex 27/2016.

522.9 Retornar os autos à AudElétrica para prosseguimento do acompanhamento da Abertura do Mercado de Energia Elétrica."

3. O Ministério Público divergiu da AudElétrica quanto a um dos itens da proposta, nos seguintes termos (peça 112):

" (...)

O Ministério Público de Contas da União manifesta-se parcialmente de acordo com a proposta de encaminhamento antes transcrita.

Nesse sentido, convém ressaltar que a fiscalização empreendida pela equipe de auditores da AudElétrica evidencia que há diversas oportunidades de melhoria na governança dos processos destinados à abertura dos mercados.

Com efeito, foram constatadas impropriedades que, em parte, motivaram o registro de 4 (quatro) achados de auditoria, concernentes (a) à inexistência de sistemática de avaliação dos resultados das ações tomadas no processo de abertura de mercado; (b) às fragilidades no processo de análise técnica que resultou na Portaria MME 50/2022 e na fundamentação de dispensa de análise de impacto regulatório (AIR); (c) à intempestividade no aperfeiçoamento regulatório da comercialização varejista para permitir a migração para o Ambiente de Contratação Livre (ACL) em janeiro de 2024; e (d) a fragilidade no tratamento dos riscos relevantes à competição efetiva e à eficiência de mercado na comercialização varejista, à proteção aos consumidores e ao tratamento de seus dados.

Para o enfrentamento desses achados de auditoria, bem como das outras constatações, afiguram-se, sob a ótica deste representante do MP de Contas, convenientes e oportunas a maioria das sugestões de encaminhamento consignadas pela equipe de auditoria.

Não obstante, o MP de Contas da União passa a discorrer sobre os problemas que culminaram no achado de auditoria 4, concernente à identificação de fragilidades no tratamento dos riscos relevantes à competição efetiva e à eficiência de mercado na comercialização varejista, à proteção aos consumidores e ao tratamento de seus dados, para o qual propõe que encaminhamento diverso seja dado pelo Tribunal.

Sobre o tema, bem identificou a equipe de fiscalização que o agente varejista - que representará os consumidores com carga individual inferior a 500 kW perante o CCEE no ambiente de contratação livre - submete-se a condições de habilitação e requisitos de manutenção da autorização mais restritivos quando comparado aos agentes que atuam no mercado do atacado. Segundo consignado pela equipe, 'tal opção regulatória se justifica pois o agente varejista pode representar maior risco sistêmico ao mercado livre de energia. A rigidez nos requisitos de habilitação e operação é forma de evitar que agentes com menor porte de capital, que teriam menor capacidade de suportar perdas consideráveis e maior risco de falência, entrem no mercado'.

Foi identificado, todavia, um descompasso entre as condições de qualificação impostas aos agentes tipo 1 e tipo 2, sendo os primeiros identificados como aqueles que não possuem limitação para registro de montantes de venda no Sistema de Contabilização e Liquidação da CCEE (inciso I, art. 2º, da REN 1.011/2022) e os segundos como aqueles que se sujeitam à limitação para registro de até 30 MWmédios, em montantes de venda mensais totais no Sistema de Contabilização e Liquidação da CCEE[footnoteRef:2]. Os agentes tipo 1 devem possuir patrimônio líquido mínimo de R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais), atestados anualmente, enquanto os agentes Tipo 2 devem demonstrar o capital social integralizado de R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais). [2: Conforme REN ANEEL 1014, de 12.04.2022. ]

Essa diferenciação de requisitos, segundo consta do relatório, já é motivo de tratamento no âmbito da CCEE, que 'já expressou a necessidade de adequação dos requisitos de habilitação para a comercialização varejista, consideradas as alterações regulatórias da REN 1.011/2022, causadas pela REN 1.014/2022, que implementou a figura do Comercializador Tipo 1, e pela implementação do monitoramento prudencial'.

Passando-se ao acompanhamento das condições de competição do mercado varejista, bem ressaltou a unidade instrutiva que 'competição efetiva é condição basilar para que o mercado varejista ofereça os benefícios a que se propõe, quais sejam a melhoria da eficiência do mercado livre de energia, o empoderamento do consumidor e a diminuição dos custos finais de energia elétrica'[footnoteRef:3]. [3: Peça xxx, §409, p. 69.]

Contudo, o exame empreendido pela equipe de auditoria não identificou mecanismos destinados à avaliação e/ou ao acompanhamento sistemático das condições do mercado varejista. Tal fato, segundo corretamente ponderou, coloca em risco a eficiência do mercado e pode ser prejudicial à abertura pretendida. Veja-se, por aplicável, o seguinte excerto do relatório:

'423. Sem um acompanhamento adequado, não é possível identificar e corrigir possíveis distorções ou restrições à concorrência, o que pode levar a um mercado pouco competitivo e com preços elevados, indo de encontro ao objetivo da política pública de abertura do mercado.

424. Além disso, o acompanhamento das condições de competição é importante para proteger os interesses dos consumidores. A competição efetiva no mercado varejista de energia elétrica permite que os consumidores tenham acesso a uma variedade de opções de fornecedores e planos de energia, o que lhes dá a possibilidade de escolher a oferta que melhor atenda a suas necessidades e preferências. Sem um acompanhamento adequado, os consumidores podem ficar sujeitos a práticas abusivas, como preços excessivos, ou falta de transparência nas informações fornecidas pelos fornecedores.

425. Ademais, o acompanhamento das condições de competição também é importante para garantir um ambiente de negócios justo e equilibrado. A competição saudável estimula a inovação, a eficiência e a qualidade dos serviços oferecidos pelos comercializadores varejistas. Sem um acompanhamento adequado, pode haver a concentração de mercado em poucos agentes dominantes, o que pode levar a práticas anticompetitivas, como a formação de cartéis ou o abuso de posição dominante.

426. Portanto, a falta de acompanhamento das condições da competição no mercado varejista de energia elétrica pode ter consequências negativas tanto para o mercado quanto para os consumidores. É fundamental que sejam adotadas medidas efetivas de acompanhamento e avaliação da competição, a fim de garantir um mercado varejista de energia elétrica eficiente, competitivo e que atenda aos interesses dos consumidores.

Acontece que as preocupações da unidade instrutiva relacionadas aos riscos de concentração de mercado em virtude da ausência de fiscalização adequada materializaram-se, conforme denotam diversas matérias jornalísticas encontradas na rede mundial de computadores.

Nesse sentido, o MP de Contas faz remissão à matéria contida no sítio www.monitormercantil.com.br, a qual destaca que:

'Estudo realizado pela empresa de tecnologia e gestão de soluções em energia GreenAnt, com base em dados da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) revelou um processo avançado de concentração de mercado no Ambiente de Contratação Livre (ACL) varejista, após a abertura ocorrida em janeiro deste ano. De acordo com o levantamento, as comercializadoras varejistas ligadas a grandes distribuidoras estão dominando o mercado nas áreas de concessão das distribuidoras.

Em alguns casos, como no Amapá, a comercializadora varejista ligada à distribuidora detém 100% dos contratos do mercado livre varejista de energia. O estudo mostra, também, que 61% do mercado livre varejista na área de concessão da EDP SP é dominado pela própria EDP e que, em todas as áreas de concessão da EDP, a sua varejista possui maior número de unidades consumidoras (UCs) do que as concorrentes.

O levantamento revela, ainda, que as varejistas independentes - não vinculadas ao mesmo grupo econômico das distribuidoras - tendem a pulverizar mais as suas áreas de atuação, ao passo que a Copel, varejista do grupo que detém a distribuidora paranaense e utiliza o mesmo nome comercial e sítio na internet, concentra 78% dos clientes em sua própria área de concessão'[footnoteRef:4] (grifou-se) [4: Disponível em: https://monitormercantil.com.br/estudo-revela-oligopolio-no-mercado-livre-de-energia-pelas-grandes-distribuidoras/. Acesso em 10 de junho de 2024.]

Matérias semelhantes podem ser identificadas em diversos outros sítios da internet, a saber:

Mercado livre energia: Cade tem desafio para julgar crimes - 18/05/2024 - Mercado - Folha (www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/05/mercado-livre-de-energia-desafia-cade-no-controle-de-crimes-contra-concorrencia.shtml) ;

Disputa pelo mercado livre de energia gera até queixa de abuso de poder. Comercializadoras se queixam que distribuidoras usam informação restrita para segurar consumidores no seu grupo econômico (https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/05/disputa-pelo-mercado-livre-de-energia-gera-ate-queixa-de-abuso-de-poder.shtml)

Dados da CCEE revelam processo de oligopolização no mercado livre varejista de energia pelas distribuidoras (https://clickpetroleoegas.com.br/dados-da-ccee-revelam-processo-de-oligopolizacao-no-mercado-livre-varejista-de-energia-pelas-distribuidoras/)

GreenAnt: comercializadoras ligadas a distribuidoras dominam ACL - Edição do Dia (https://megawhat.energy/noticias/megaexpresso/153240/greenant-comercializadoras-ligadas-distribuidoras-dominam-acl-edicao-do-dia)

Conforme se depreende das matérias jornalísticas antes destacadas, dados então disponibilizados pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica evidenciam grande concentração em diversas localidades, podendo ser observado o domínio de comercializadoras varejistas ligadas a grandes distribuidoras nas suas áreas de concessão. Nesse contexto, observa-se que não há competição efetiva, sendo mitigadas ou eliminadas as vantagens que adviriam do ambiente livre de contratação.

Ademais, deve ser registrado que, além da inexistência de processos de acompanhamento e fiscalização pelo poder concedente, também foram identificados outros fatores que contribuem para os problemas relacionados à ausência de competição, tais como o (a) risco de assimetria de informações entre consumidores e comercializadores; e (b) possiblidade de adoção de ações pelas comercializadoras e distribuidoras de ações não conformes à Lei Geral de Proteção de Dados.

Nesse contexto, considerando que foi materializado o risco vislumbrado pela equipe de fiscalização, entende o MP de Contas que a recomendação relacionada ao tema deve ser convertida em determinação.

III

Ante o exposto, o MP de Contas manifesta-se de acordo com a proposta de encaminhamento apresentada, de modo uniforme, pela AudElétrica, sugerindo que a recomendação contida no item 522.6, subitens 'iv', 'v' e 'vi', seja convertida em determinação."

É o Relatório.

Voto

Este processo trata de acompanhamento criado para avaliar o processo de abertura gradual do mercado de energia elétrica brasileiro, verificando o tratamento que está sendo adotado quanto aos riscos sistêmicos identificados. O objeto principal desta primeira fase são os possíveis impactos em relação à abertura promovida pela Portaria MME 50/2022 a partir de 1/1/2024, quando foi permitida a migração para o Ambiente de Contratação Livre (ACL) dos consumidores do Grupo A (de alta tensão, igual ou acima de 2,3 kV, a exemplo de indústrias, hospitais, supermercados e shoppings) com demanda inferior a 500 kW.

***

2. Preliminarmente, anoto que a comercialização de energia elétrica é regulada sobretudo pela Lei 10.848/2004 e pelo Decreto 5163/2004. O art. 1, § 2º, I e II, deste último apresenta as definições dos dois ambientes de contratação (grifos acrescidos): "I - Ambiente de Contratação Regulada - ACR o segmento do mercado no qual se realizam as operações de compra e venda de energia elétrica entre agentes vendedores e agentes de distribuição, precedidas de licitação, ressalvados os casos previstos em lei, conforme regras e procedimentos de comercialização específicos; II - Ambiente de Contratação Livre - ACL o segmento do mercado no qual se realizam as operações de compra e venda de energia elétrica, objeto de contratos bilaterais livremente negociados, conforme regras e procedimentos de comercialização específicos;"

3. Outro ponto introdutório relevante a se expor é a modificação que ocorreu ao longo do tempo quanto à previsão legal para a liberdade de escolha na compra de energia elétrica. A Lei 9.074/1995, em seu art. 15, previu que os consumidores com carga igual ou maior que 10.000 kW, atendidos em tensão igual ou superior a 69 kV, poderiam optar por contratar seu fornecimento, no todo ou em parte, com produtor independente de energia elétrica. A própria norma estabeleceu outras etapas de abertura até fixar que, a partir de 1/1/2019, os consumidores com carga igual ou superior a 3.000 kW (três mil quilowatts), em tensão inferior a 69 kV, poderiam optar pela compra de energia elétrica a qualquer concessionário, permissionário ou autorizatário de energia elétrica do sistema. O art. 16 estabeleceu que o fornecedor de energia elétrica é de livre escolha dos novos consumidores cuja carga seja igual ou maior que 3.000 kW, atendidos em qualquer tensão.

4. Além disso, o art. 15, § 3º, da mesma lei previu que, após oito anos de sua publicação, o poder concedente poderia diminuir os limites de carga e tensão estabelecidos nos arts. 15 e 16. Com base nesse permissivo legal, o Ministério de Minas e Energia (MME) definiu a gradual flexibilização das restrições de acesso ao mercado livre de energia por meio das Portarias MME 514/2018, 465/2019 e 50/2022. Transcrevo tabela produzida pelo próprio ministério (peça 38, p. 2-3) e já transcrita no Relatório de Acompanhamento:

Critério de liberação de consumidores

Início da vigência

Dispositivo do ordenamento jurídico

Todos: Carga ≥ 3.000 kW

1º/1/2019

§ 2º-A do art. 15 da Lei 9.074/1995, republicada, com redação dada pela Lei 13.360/2016.

Carga ≥ 2.500 kW.

1º/7/2019

§ 1º do art. 1º da Portaria MME 514/2018.

Carga ≥ 2.000 kW.

1º/1/2020

§ 2º do art. 1º da Portaria MME 514/2018.

Carga ≥ 1.500 kW.

1º/1/2021

§ 3º do art. 1º da Portaria MME 514/2018, incluído pela Portaria MME 465/2019.

Carga ≥ 1.000 kW

1º/1/2022

§ 4º do art. 1º da Portaria MME 514/2018, incluído pela Portaria MME 465/2019.

Carga ≥ 500 kW.

1º/1/2023

§ 5º do art. 1º da Portaria MME 514/2018, incluído pela Portaria MME 465/2019.

Carga < 500 kW e Tensão ≥ 2,3 kV (Grupo A), desde que representados por agente varejista na CCEE.

1º/1/2024

§§ 1º e 2º do art. 1º da Portaria MME 50/2022.

5. O mercado livre de energia tem crescido significativamente nos últimos anos. O Ambiente de Contratação Livre (ACL) já constituía 36% do total de energia elétrica consumida no Brasil em 2022, tendo aumentado sua participação, bem como a quantidade de seus agentes de consumo desde 2015.

6. Embora se trate de ambiente atrativo e competitivo, que apresenta vantagens para os consumidores (como maior liberdade de escolha de fornecedores, por exemplo), o processo de abertura é significativamente complexo, pois gera distorções na alocação de custos e riscos entre os ambientes de mercado. Dessa forma, é indispensável a adoção de medidas concretas para mitigar essas falhas, assim como alterações regulatórias eficazes.

***

7. Feita essa breve contextualização, reitero que a fiscalização em discussão teve como objetivo realizar a primeira fase de acompanhamento do processo de abertura gradual do mercado, avaliando especialmente o tratamento que tem sido dado aos riscos sistêmicos inerentes a essa evolução e principalmente quanto à abertura promovida pela Portaria MME 50/2022 a partir de 1/1/2024. Para isso, foram avaliadas ações do Ministério de Minas e Energia (MME), da Agência nacional de Energia Elétrica (Aneel), da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) e de outras entidades do setor elétrico.

8. No curso dos trabalhos, constatou-se que os principais problemas estariam relacionados a quatro pontos. Diante disso, foram formuladas as seguintes questões:

a) Questão I - O processo de abertura de mercado tem governança institucionalizada, indicação de objetivos, atribuição de competências, interlocução institucional estruturada e sistemática de avaliação das medidas?

b) Questão II - A abertura de mercado obedece aos princípios da legalidade, razoabilidade, transparência e motivação, tendo sido precedida das análises pertinentes de impacto, medidas necessárias de mitigação de riscos, adequação normativa com o ordenamento jurídico e regras do Setor Elétrico?

c) Questão III - O arcabouço normativo-regulatório que trata sobre migração de consumidores ao mercado livre e sobre comercialização varejista é adequado para suportar a expansão do mercado livre com o advento da Portaria MME 50/2022?

d) Questão IV - A atuação dos órgãos competentes - formulador de política (MME), regulador/fiscalizador (Aneel) e do operador de mercado (CCEE) - é adequada e suficiente para garantir a segurança do mercado livre e a competição justa no âmbito da comercialização varejista, considerando a próxima fase da abertura do mercado e a expansão do número de consumidores livres e de comercializadores?

9. Realizados os procedimentos de fiscalização, a equipe de fiscalização identificou estes quatro achados:

a) Inexistência de sistemática de avaliação dos resultados das ações tomadas no processo de abertura de mercado;

b) Fragilidades no processo de análise técnica que resultou na Portaria MME 50/2022 e na fundamentação de dispensa de Avaliação de Impacto Regulatório (AIR);

c) Intempestividade no aperfeiçoamento regulatório da comercialização varejista para permitir a migração para o ACL em janeiro de 2024; e

d) Fragilidades no tratamento dos riscos relevantes à competição efetiva e à eficiência de mercado na comercialização varejista, à proteção aos consumidores e ao tratamento de seus dados.

10. Diante dos dados colhidos e da análise realizada, a unidade técnica propõe, em síntese, a expedição de determinação, recomendações e ciência ao MME e à Aneel.

11. Por sua vez, o Ministério Público concorda com a quase totalidade da proposta da AudElétrica, sugerindo a conversão de três das recomendações em determinação, assunto de que tratarei mais adiante.

12. Passo a tratar dos quatro temas abordados pela equipe de fiscalização.

***

13. Acerca da governança e institucionalização do processo de abertura de mercado, há questões que, a despeito de terem sido identificadas como falhas e fragilidades que demandam atenção, não foram considerados achados de auditoria. É o caso da inexistência de norma única que defina a abertura de mercado como política pública e da ausência de coordenação contínua e cooperação entre as diferentes entidades envolvidas.

14. Ainda quanto a esse primeiro tema, apontou-se o primeiro achado da auditoria: a inexistência de avaliação sistemática de resultados e impactos das ações implementadas no contexto do processo de abertura de mercado.

15. Como bem afirma a equipe de auditoria, a ausência dessa sistemática contraria dispositivos do Decreto 9.203/2017, bem como as boas práticas de avaliação de políticas públicas presentes no Referencial de Controle de Políticas Públicas do TCU.

16. No que concerne a esse tema, é conveniente reiterar que, mediante a Portaria MME 514/2018, que foi alterada pela Portaria MME 465/2019, houve a liberação progressiva de consumidores para optar pela compra de energia elétrica a qualquer concessionário, permissionário ou autorizado de energia elétrica do Sistema Interligado Nacional. Em 1/1/2019, os que consumiam 3000 kW ou mais foram liberados; periodicamente esse valor alcançou, em 1/1/2023, os que consumiam 500 kW ou mais.

17. Na sequência, de acordo com a Portaria MME 50/2022, desde 1/1/2024, os consumidores classificados como Grupo A (que recebem tensão igual ou acima de 2,3 kV), podem optar pela compra de energia elétrica a qualquer concessionário, permissionário ou autorizado de energia elétrica do Sistema Interligado Nacional. Conforme essa norma, dentro desse grupo, os que consomem carga inferior a 500 kW devem ser representados por agente varejista perante a CCEE. É interessante ressaltar que, com essa última alteração, houve ampla abertura para migração do ambiente regulado para o livre.

18. Como bem depreendeu a unidade técnica, a motivação apresentada pelo MME para essa abertura pode ser resumida nos seguintes objetivos: o empoderamento dos consumidores; o aumento da eficiência do mercado, por meio da competição; e a redução dos custos de energia. Igualmente correta a inferência da equipe de fiscalização de que o ministério entende que, para atingir esses objetivos, seria necessário equacionar os riscos e adotar medidas acessórias que contribuam para a formação de um mercado livre mais justo, equânime e eficiente.

19. Ocorre que se verificou a inexistência de indicadores de desempenho e a falta de avaliações das medidas que estão sendo tomadas e que disso decorre a reduzida compreensão da efetividade do processo de abertura, assim como dos prejuízos causados ao ACR (com a migração para o ACL, que pode ser massiva) e outros possíveis riscos.

20. Para que os objetivos almejados sejam efetivamente alcançados, é recomendável que sejam estabelecidos parâmetros claros que permitam o acompanhamento eficiente das ações adotadas, possibilitando, por consequência, a avaliação mais precisa do cenário que está se estabelecendo para, eventualmente, promover as modificações e correções necessárias durante o processo.

21. Registro que essa conduta seria aderente ao que prevê o art. 4º, III, do Decreto 9.203/2017, que dispõe sobre a política de governança da Administração Pública Federal, bem como ao Referencial de Controle de Políticas Públicas do TCU.

22. Desse modo, é adequada a proposta da AudElétrica de recomendar ao MME que apresente: os objetivos da política de abertura, de forma mais explícita; a avaliação de resultados e dos impactos causados pelas Portarias MME 514/2018 e 465/2019; e a metodologia de avaliação de resultados para a abertura que está sendo promovida pela Portaria MME 50/2022 e outras que virão, contendo metas e indicadores, responsabilidades, premissas e cronograma avaliativo.

***

23. O segundo tema a ser tratado refere-se às fragilidades no processo de análise técnica que resultou na Portaria MME 50/2022, bem como na fundamentação de dispensa de Avaliação de Impacto Regulatório (AIR).

24. Por meio da Portaria MME 465/2019, que alterou a Portaria MME 514/2018, foi fixado que, até 31/1/2022, a Aneel e a CCEE deveriam "apresentar estudo sobre as medidas regulatórias necessárias para permitir a abertura do mercado livre para os consumidores com carga inferior a 500 kW, incluindo o comercializador regulado de energia e proposta de cronograma de abertura iniciando em 1º de janeiro de 2024".

25. A equipe de acompanhamento examinou os seguintes documentos que serviram de base para a abertura que acabou sendo promovida no início do corrente ano conforme a Portaria MME 50/2022: a Proposta Conceitual para Abertura do Mercado e a Análise de Cenários (peça 52) e o Cronograma para a Abertura do Mercado (peça 61, estudo complementar anexo à Carta CT-CCEE02898/2022), ambos elaborados pela CCEE; e a Nota Técnica 10/2022 SRM/ANEEL, de 31/1/2022.

26. A Proposta Conceitual para Abertura do Mercado aponta como princípios a utilização de práticas internacionais como referência a construção de bases sólidas para o aperfeiçoamento e a evolução do modelo de abertura de mercado e a busca por uma transição adequada para um modelo de mercado liberalizado. Nesse contexto, indica os seguintes temas prioritários para a ampliação da abertura de mercado: "i) tratamento da medição; ii) Supridor de Última Instância; iii) comercialização regulada; iv) contratos legados e sobrecontratação; v) comercialização varejista; vi) modelo de faturamento; e vii) efeito da abertura do mercado de baixa tensão (BT) sobre a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), devido aos descontos nas Tarifas de Uso de Sistemas" (peça 52, p. 22).

27. Na Análise de Cenários e Cronograma para a Abertura de Mercado, apresenta-se uma projeção de cenários de migrações de consumidores do ACR para o ACL, e proposta de cronograma "baseado em premissas de aumento de carga do setor elétrico e composição dos contratos das distribuidoras ao longo do tempo, para analisar a possibilidade de abertura de mercado para novas faixas, e assim adequar o 'calendário' de liberalização às melhores condições, e minimizar o risco de sobrecontratação das distribuidoras", como bem explica a equipe de fiscalização deste Tribunal.

28. Nesse estudo, a CCEE propôs a abertura de mercado: (a) em janeiro de 2024, para o Grupo A, abaixo de 500 kW; (b) em janeiro de 2026, para o Grupo B não residencial e não rural; e (c) a abertura gradual, a partir de janeiro de 2028, para o Grupo B residencial e rural. Além disso, com o intuito de viabilizar a abertura do mercado, a CCEE apresentou uma previsão de ações e medidas regulatórias e preparatórias que seriam adotadas entre 2022 a 2024, de forma a criar as condições necessárias para uma abertura sustentável, organizada e gradual (peça 61, p. 28).

29. A Tomada de Subsídios Aneel 10/2021, anexa à Nota Técnica 10/2022-SRM/ANEEL (peça 54), apresenta análise sobre as medidas regulatórias necessárias para permitir a abertura do mercado livre, em que consolidaram as contribuições de agentes do setor que se manifestaram na fase de coleta da tomada de subsídios.

30. Entre outras questões, a Aneel destaca a necessidade de: (a) que seja feito um escalonamento no processo de abertura; (b) avaliação constante do perfis de contratação das concessionárias e do mercado com potencial de migração; (c) aprimoramento de mecanismos de gerenciamento de portfólios de contratos das distribuidoras; (d) evitar o aumento de contratos legados e a priorização da expansão via contratação de reserva de capacidade. Ademais, listou diversos pontos que demandavam aprimoramentos, tais como campanhas de esclarecimento de consumidores e regulamentação contra abusos de poder de mercado na comercialização varejista. Ao fim, destacou que, antes de fixar um cronograma, deveriam ser estabelecidas ações prioritárias para viabilizar a abertura do mercado livre.

31. Quanto à análise da manifestação do MME a respeito desses documentos elaborados pela CCEE e pela Aneel, assinalo que a equipe de fiscalização considerou que duas questões não foram tratadas apropriadamente - o risco da sobrecontratação e a necessidade de medidas para aprimorar os mecanismos de gerenciamento do portfólio das distribuidoras. De fato, os exemplos apontados pelos auditores mostram essa lacuna: na análise sobre a Consulta Pública, o Ministério não considerou os questionamentos sobre as premissas dos cenários de sobrecontratação da CCEE; e tampouco foram avaliadas as objeções e riscos indicados decorrentes da ineficácia dos mecanismos de gestão de portfólio.

32. Dessa forma, é apropriada a conclusão da unidade técnica de que não houve o devido tratamento prévio de temas relevantes para a abertura apropriada do mercado, além de não terem sido devidamente abordados riscos importantes e conhecidos, em especial o de sobrecontratação das distribuidoras de energia.

33. Por consequência, acolho a proposta a AudElétrica de determinar ao MME, em conjunto com a Aneel, a elaboração de plano de ação para a adoção das medidas necessárias para suprir as lacunas nas análises e estudos realizados. É igualmente pertinente dar ciência ao Ministério de que a falta de avaliação quanto aos impactos causados ao ACR, decorrentes da migração de consumidores para o ACL, pode resultar no descumprimento do disposto no § 5º do Art. 15 da Lei 9.074/1995 ("o exercício da opção pelo consumidor não poderá resultar em aumento tarifário para os consumidores remanescentes da concessionária de serviços públicos de energia elétrica que haja perdido mercado").

34. A realização da Avaliação do Impacto Regulatório (AIR) - estudo previsto no art. 5º da Lei 13.874/2019 para propostas de edição e modificação de atos normativos como os que se examinam neste processo - foi dispensada pelo MME. O fundamento foi o art. 17, VII, do Decreto 10.411/2020, que regulamentou a referida lei: "a AIR poderá ser dispensada pela autoridade competente pela edição da norma, nas hipóteses de:... VIII - ato normativo que reduza exigências, obrigações, restrições, requerimentos ou especificações com o objetivo de diminuir os custos regulatórios".

35. A decisão pela não elaboração da AIR foi tomada em 21/9/2022 pela Comissão Permanente de Análise de Impacto Regulatório (CPAIR) do MME. A despeito da não realização da AIR, foi proposta a inclusão, na agenda de Avaliação de Resultado Regulatório (ARR) do MME para o período de 2023 a 2026, de uma avaliação dos resultados da Portaria MME 50/2022, nos termos do art. 13, § 2º, do Decreto 10.411/2021.

36. Com relação ao enquadramento do caso à hipótese do art. 17, VII, do decreto, concordo com a unidade técnica que não está claro que as normas criadas para a abertura do mercado têm o objetivo de diminuir custos regulatórios (conforme a definição do art. 2º, IV, do Decreto 10.411/2020). De acordo com os estudos, verificase que poderão incorrer em custos não somente os consumidores que migrarem, mas também outros agentes, sobretudo as distribuidoras e os consumidores cativos que não têm o direito de migrar para o ACL.

36. Desse modo, como não está plenamente caracterizada a condição estabelecida no normativo para a dispensa da AIR, é correto recomendar ao MME que realize a ARR prevista pelo CPAIR, bem como, no prazo de 180 dias, elabore a AIR ou estudos de impacto que possam subsidiar a edição de atos normativos alusivos à abertura de mercado do Grupo B. Também é apropriado dar ciência ao MME de que a dispensa de AIR em que há, no mínimo, dúvidas razoáveis quanto ao custos regulatórios decorrentes da nova legislação está em desconformidade com o disposto no art. 5º da Lei 13.874/2019.

***

37. O terceiro assunto a ser discutido é atinente aos aperfeiçoamentos regulatórios da comercialização varejista e a simplificação do processo de migração, que seriam desejáveis previamente ao aumento de participantes no mercado livre decorrente da Portaria MME 50/2022.

38. De início, esclareço que, com a alteração do art. 4-A da Lei 10.848/2004 pela Lei 14.120/2021, passou a ser possível a comercialização varejista em ACL, em que um agente habilitado na CCEE representa pessoas físicas ou jurídicas a quem seja facultado não aderir à referida câmara, assumindo responsabilidades comerciais e operacionais.

39. O achado de fiscalização identificado pelos auditores foi a demora em estabelecer o novo arcabouço normativo, cuja criação era essencial para o sucesso da abertura do mercado, conforme opinião praticamente consensual no setor.

40. A Consulta Pública 28/2023, criada pela Aneel para a discussão do tema, foi publicada em 30/8/2023, com prazo de contribuição até 13/10/2023 e conclusão em 12/12/2023, apenas 20 dias antes da abertura do mercado, prevista para 1/1/2024.

41. Constata-se, portanto, que o intervalo de tempo foi claramente insuficiente para o efetivo conhecimento e a devida adaptação dos agentes envolvidos à nova regulamentação. Além disso, destaco que, em relação a alguns pontos centrais, como a simplificação do processo de migração e a agregação dos dados de medição, constam somente diretrizes gerais na Nota Técnica da Aneel, ainda que esses assuntos tenham sido examinados com detalhes na contribuição que foi oferecida pela CCEE durante a consulta pública.

42. Também foram identificadas consequências negativas decorrentes da já examinada não realização de Avaliação de Impacto Regulatório (AIR) pela Aneel e pelo MME, necessária para o aperfeiçoamento regulatório da comercialização varejista, em especial quanto a: "i) atribuição às distribuidoras de responsabilidade de Supridor de Última Instância (SUI) de forma indireta, sem o arcabouço regulatório adequado e sem o dimensionamento do impacto dessa atividade, com riscos de gerar judicialização e alocação ineficiente de custos entre os ambientes de contratação; e ii) atribuição de custos indiretos e riscos com a operacionalização de sistemática de tratamento da inadimplência (suspensão e desligamento) dos consumidores varejistas, sem a adequada avaliação prévia da extensão dos impactos" (Relatório de Acompanhamento, peça 109, p. 44).

43. Diante desse contexto, a equipe de fiscalização cogitou recomendar ao MME o adiamento da abertura de mercado. Contudo, foi convencida do contrário, sobretudo após os debates realizados, em 8/11/2023, no TCU, durante o Painel de Achados, em que a maioria dos especialistas e agentes presentes defendeu a não postergação, em razão: da segurança jurídica; das mais de 10.000 unidades consumidoras já haviam solicitado migração; e pelo fato de os principais riscos identificados pela equipe deste Tribunal já estarem sendo tratadas pelo regulador ou estarem inseridos em projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional.

44. Não obstante, concordo com a unidade técnica que é necessário dar ciência ao MME e à Aneel, a respeito da intempestividade, para que não se repita em casos semelhantes.

45. Além do mais, tendo em vista a necessidade, segundo a Aneel, de ato legislativo para a instituição do Supridor de Última Instância (que atua como proteção para os consumidores e distribuidoras quando o cliente perde um comercializador), também concordo com a pertinência de recomendar ao MME a realização de estudos para definir a viabilidade e necessidade da criação de proposta legislativa nesse sentido.

46. Ainda sobre a necessidade de evolução regulatória, é interessante comentar a respeito de duas questões relevantes que foram discutidas na Tomada de Subsídios 10/2021 e na Consulta Pública 28/2023: (a) a agregação de medição dos consumidores varejistas e (b) as medidas de simplificação do processo de migração para o ACL.

47. Com relação à forma de medição do novo consumidor do mercado livre, a CCEE defende, em síntese, que os clientes de um determinado comercializador varejista em um certo local sejam representados na CCEE por uma unidade consumidora virtual deste comercializador. Esse modelo dispensaria a troca de grande quantidade de medidores, "realizando a agregação dos dados de medição dos consumidores, desenvolvendo para isso metodologia de tratamento de dados que permitisse o atendimento de requisitos de contabilização e liquidação das operações no Mercado de Curto Prazo (MCP) ", como bem afirma a equipe deste Tribunal.

48. Em outra contribuição à Consulta Pública 28/2023, a CCEE apresentou à Aneel proposta de simplificação do processo de acesso ao mercado livre. A ideia, em resumo, consiste na realização de cadastro simples, enviado pelo comercializador varejista e validado pela distribuidora, em substituição a processo complexo de cadastro, apresentação de documentos e envio diário de dados.

49. A despeito de essa contribuição da CCEE (e de outras, como foi o caso da empresa Neoenergia) ter sido oferecida em data próxima à abertura de mercado, considero correta a conclusão da equipe técnica do TCU de que a "avaliação dos impactos de uma série de medidas de adequação de procedimentos, mudanças regulatórias, novos fluxos de informação e atividades atribuídas aos agentes do setor elétrico deixaram de ser adequadamente dimensionadas, em razão da não realização de Avaliação de Impacto Regulatório". Como, para essas questões já serão expedidas recomendação e ciência, mencionados neste voto, resta, de fato, somente acrescer ciência de que afronta o art. 9º, § 3º, da Lei 13.848/2019 a realização da consulta pública sem considerar todos os detalhamentos da CCEE a respeito de sua proposta de "novo processo estrutural de acesso ao mercado livre".

50. Quanto à padronização do procedimento de migração, consumidores têm relatado dificuldades ao efetuar a mudança, tendo em vista que a REN 1.000/2021 apenas fixa prazo de 180 dias de antecedência para a efetiva migração, porém não dispõe sobre obrigações entre consumidores e distribuidoras, documentação ou outros prazos. Por esse motivo, também reputo apropriada a proposta da AudElétrica de recomendar à Aneel "que adote providências no sentido de priorizar o aprimoramento previsto na Agenda Regulatória 2024-2025 que trata da padronização e simplificação do processo de migração para o ACL, de forma a evitar a discrepância de exigências, procedimentos e prazos entre as distribuidoras e assim contribuir para o acesso isonômico ao mercado livre".

***

51. O quarto e último assunto é concernente à análise da efetividade da atuação do MME, da Aneel e da CCEE, para que seja garantida a segurança do mercado livre e a competição justa na comercialização varejista. Trata-se de tema também relativo à provável próxima fase da abertura do mercado e à expansão ainda maior do número de consumidores livres e de comercializadores.

52. Como achado de fiscalização, foram identificadas "fragilidades no tratamento dos riscos relevantes à competição efetiva e à eficiência de mercado na comercialização varejista, à proteção aos consumidores e ao tratamento de seus dados". Segundo a equipe de acompanhamento, as falhas decorrem, em resumo, da deficiência da regulação atual, da ausência de avaliação do mercado varejista e da fiscalização ineficaz pelos órgãos responsáveis.

53. Como já afirmei no tópico anterior, a comercialização varejista em ACL passou a ser possível com a alteração do art. 4-A da Lei 10.848/2004 pela Lei 14.120/2021. Assim, um comercializador habilitado na CCEE pode representar pessoas físicas ou jurídicas a quem seja facultado não aderir à referida câmara, assumindo responsabilidades comerciais e operacionais.

54. Com a abertura promovida pela Portaria MME 50/2022, com início em 1/1/2024, havia, e ainda há, um potencial significativo de consumidores do Grupo A (tensão igual ou acima de 2,3 kV) que recebem carga inferior a 500 kW, que podem aderir ao mercado livre sendo representados por agentes varejistas junto à CCEE. Além disso, é provável que ocorra a abertura de mercado também para os consumidores de baixa tensão (Grupo B), que também serão eventualmente representados por esses agentes.

55. Os riscos associados à ausência ou ineficiência do monitoramento da competitividade do mercado são a não identificação e correção de distorções ou restrições à concorrência - por exemplo, a concentração em um ou poucos comercializadores, que sejam ligados à distribuidora -, tendo como consequência, baixa ou inexistência de competição e prática de preços elevados. Por certo, a efetiva disputa entre diversos agentes em ambiente de real concorrência beneficia o consumidor em vários aspectos, como a possibilidade de escolha de fornecedor, a redução dos valores pagos pela energia e a busca por inovação e eficiência.

56. Logo, diante do crescimento do mercado de varejo e dos possíveis riscos de concentração, fica clara a necessidade de seu monitoramento contínuo.

57. No entanto, ao verificar as propostas discutidas no âmbito da Consulta Pública 28/2023 e a Agenda Regulatória da Aneel para o biênio 2024-2025, a equipe de fiscalização concluiu não haver previsão alguma para ações dessa natureza. A propósito, ao contrário do que afirma a Aneel, as Resoluções Normativas 846, de 11/6/2019 e 948, de 16/11/2021, não estabelecem medidas efetivas de fiscalização, tampouco criam sistemática de acompanhamento ininterrupto das condições de competição do mercado de varejo.

58. Cabe registrar, contudo, que, posteriormente, a Aneel, em decorrência de sua reorganização administrativa, apresentou, por meio da Nota Técnica 17/2024, estudos para propor ações adequadas às novas atribuições de sua Superintendência de Fiscalização Econômica, Financeira e de Mercado (SFF), relativas ao monitoramento e à fiscalização de mercado, em especial em relação a análise da concorrência e atos de concentração econômica no setor de energia.

59. Algumas medidas previstas nesse documento, tais como a elaboração de relatórios periódicos com diagnóstico da concorrência e concentração econômica, podem, de fato, contribuir para dirimir os problemas identificados pela equipe deste Tribunal. Entretanto, ainda não houve o estabelecimento de ações concretas para que seja realizado um monitoramento consistente e permanente.

60. Diante disso, a AudElétrica reforça a necessidade de recomendar à agência que, quanto ao risco de competição inefetiva no mercado varejista: "i) estabeleça formalmente sistemática de acompanhamento periódico para avaliar as condições competitivas do mercado varejista e a efetividade da competição; e ii) elabore estudo para determinar quais os aprimoramentos regulatórios e medidas fiscalizatórias necessárias para garantir o adequado tratamento dos dados dos consumidores em conformidade com o previsto na LGPD".

61. É acerca desta questão que há pequena divergência do Ministério Público (peça 112) quanto à proposta da unidade técnica. A Procuradoria entende que há necessidade de expedir determinações e não recomendações para equacionar esse problema, pois acredita que "as preocupações da unidade instrutiva relacionadas aos riscos de concentração de mercado em virtude da ausência de fiscalização adequada materializaram-se, conforme denotam diversas matérias jornalísticas encontradas na rede mundial de computadores".

62. Para sustentar seu entendimento, aponta três matérias jornalísticas que indicam a ocorrência de concentração e abuso de poder no mercado no ambiente de contratação livre varejista após a abertura de promovida em 1/1/2024.

63. Neste ponto, cabe uma observação quanto à sugestão final do Parquet. Apesar de ter discutido a existência de riscos à concentração de mercado, que resultaram na propostas de recomendação da unidade técnica acima transcrita, indicou que fossem convertidas em determinação somente as recomendações propostas nos subitens "iv" a "vi" do item 522.6 (referentes ao item 501 do relatório, de que tratarei mais adiante). Todavia, entendo que, embora não o tenha feito expressamente ao fim de sua manifestação, a intenção do Ministério Público era incluir o subitem "ii" (correspondente ao item 428 do relatório), pois, em seu Parecer, tratou deste na maior parte de sua argumentação.

64. A respeito da sugestão para modificação de recomendação para determinação, penso que deve ser observada a Resolução TCU 315/2020, que, em seu art. 2º, define determinação como o comando que impõe "a adoção de providências concretas e imediatas com a finalidade de prevenir, corrigir irregularidade, remover seus efeitos ou abster-se de executar atos irregulares". Conforme esse mesmo dispositivo, a recomendação deve ser compreendida como a "deliberação de natureza colaborativa que apresenta ao destinatário oportunidades de melhoria, com a finalidade de contribuir para o aperfeiçoamento da gestão ou dos programas e ações de governo".

65. Embora as informações sobre distorções na competitividade tenham sido colhidas por meio não oficiais, creio que as matérias jornalísticas apontadas podem sim, nesse caso, ser consideradas como evidências de que essas irregularidades já estão ocorrendo em certas localidades, sendo igualmente razoável concluir que os problemas estejam na iminência de ocorrer também em outras áreas. Dessa forma, mostra-se apropriada a expedição do subitem "ii" (correspondente ao item 428 do relatório) na forma de determinação, nestes termos:

"Determinar à Aneel que, em conformidade com as atribuições normativas previstas nos incisos VIII e IX do art. 3º da Lei 9.427 e nos arts. 25 a 27 da Lei 13.848/2019 e, de forma a endereçar o risco de competição inefetiva no mercado varejista: (i) estabeleça, formalmente, sistemática de acompanhamento periódico para avaliar as condições competitivas do mercado varejista e a efetividade da competição; (ii) elabore estudo para determinar quais os aprimoramentos regulatórios e medidas fiscalizatórias necessárias para garantir o adequado tratamento dos dados dos consumidores em conformidade com o previsto na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD)."

66. Ainda tratando da competitividade do mercado e da proteção do consumidor varejista, há de se reconhecer a posição de inferioridade deste em relação aos grandes consumidores, ante a diferença de capacidade e estrutura para avaliar a complexidade do mercado e os riscos a ele inerentes.

67. Nesse sentido, foi editada a Nota Técnica 10/2022 - SRM/Aneel, em que foram apresentadas quatro medidas regulatórias necessárias para a abertura de mercado para esses consumidores (peça 54, p. 36-37): (i) realização de campanhas de esclarecimento e conscientização dos consumidores; (ii) indicar que os fornecedores varejistas tenham um produto padrão divulgado na internet, de modo a permitir a simulação e comparação de produtos razoavelmente padronizados, em ambientes de confiança, que garantam uma escolha consciente dos custos, benefícios e riscos envolvidos; (iii) criar regulamentação contra abusos de poder de mercado e acesso à informação dos consumidores, no caso de grupos econômicos que possuam distribuidoras e agentes de comercialização no mercado livre; (iv) determinar que os comercializadores de energia para consumidores residenciais estabeleçam canais de atendimento acessíveis e atuem como disseminadores de informação, contribuindo para a capacitação dos consumidores à nova realidade".

68. A AudElétrica propõe recomendações acerca das duas primeiras medidas, em consonância com a Nota Técnica da Aneel: (a) recomendação para que o MME, juntamente com a Aneel e a CCEE, "desenvolva e implemente uma estratégia de comunicação eficaz e abrangente para informar e conscientizar os consumidores sobre o funcionamento do mercado livre de energia e os riscos associados à migração" (item 522,2, iv, da proposta); (b) recomendação à Aneel para "que estude a possibilidade de implementar uma ferramenta de comparação centralizada, disponível em um website independente, para facilitar a comparação entre as ofertas de produtos padronizados oferecidos por comercializadores varejistas de energia" (item 522,6, iii, da proposta). Ambas as ações podem contribuir significativamente para reduzir a assimetria de informações entre os consumidores varejistas e os seus representantes junto à CCEE (comercializadores), bem como aumentar a competição no mercado aberto.

69. A sessão do relatório intitulada "Tratamento de Dados", em que se examinam questões relativas à proteção dos dados dos consumidores de energia elétrica, está intimamente ligada a possíveis distorções na competitividade do mercado, que já foi tratada anteriormente neste voto.

70. Como bem destacou a equipe de fiscalização, "a proteção dos dados dos consumidores é uma obrigação legal para as empresas de energia elétrica". Ademais, as "violações dessas obrigações podem resultar em penalidades significativas, incluindo multas e danos à reputação".

71. Com base na Diretriz EU 944/2019 (peça 80), aplicável aos países da União Europeia, a equipe apresenta algumas responsabilidades das agências reguladoras e distribuidoras quanto à proteção ao consumidor. Como consta corretamente do relatório de acompanhamento, fica "claramente exposto nas disposições da Diretriz a importância do adequado tratamento de dados dos consumidores, os riscos relacionados a dados envolvidos na atividade de distribuição e o risco de empresas verticalmente integradas que possuem distribuidoras e comercializadores sob seu controle".

72. A respeito da terceira medida (transcrita acima, item 67) mencionada na Nota Técnica 10/2022 - SRM/Aneel, ressalto, a princípio, que a Resolução Normativa Aneel 1.000/2021 estabelece, em seu art. 659, § 3º, que os dados pessoais do consumidor e demais usuários serão coletados, armazenados, tratados, transferidos e utilizados exclusivamente nos termos do disposto na Lei 13.709, de 14/8/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais).

73. Acrescento que, no âmbito do processo de discussão das concessões de distribuição vincendas, o MME apresentou, entre as diretrizes para renovação, a inclusão de dispositivo no sentido de convergir com a legislação sobre proteção de dados de usuários, inserindo cláusula de proteção dos dados e compartilhamento com terceiros.

74. Na Nota Técnica que abriu a Consulta Pública 28/2023 (peça 70), a Aneel propôs que a CCEE atuasse como centralizadora de todas as informações relacionadas à migração de consumidores para o ACL representados por agentes varejistas, tendo em vista os diversos agentes que atuam na comercialização varejista - as distribuidoras, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), os agentes varejistas, a Aneel, a própria CCEE e os consumidores. A equipe de fiscalização afirma que essa intenção de centralizar a gestão dos dados, que foi bem recebida pelo setor, "pode ser o primeiro passo de evolução em direção ao conceito de Open Energy no mercado livre de energia elétrica do Brasil". Explica ainda que "o Open Energy é um conjunto de regras e tecnologias para permitir, com consentimento do consumidor, o acesso aos seus dados por diferentes fornecedores de energia. A prática carrega benefícios na modernização do setor, criação de soluções individuais e empoderamento do consumidor de energia".

75. Sobre essas últimas questões, a AudElétrica propõe as recomendações transcritas a seguir, que, de acordo com o Ministério Público, devem ser convertidas em determinações, em decorrência da materialização das "preocupações da unidade instrutiva relacionadas aos riscos de concentração de mercado em virtude da ausência de fiscalização adequada", "conforme denotam diversas matérias jornalísticas encontradas na rede mundial de computadores":

"522.6 Recomendar à Agência Nacional de Energia Elétrica, nos termos do inciso III do art. 250 do Regimento Interno do TCU:

(...)

iv) estabeleça plano de ação de fiscalização para verificar a situação das empresas verticalizadas no setor de energia elétrica (que atuem nas atividades de distribuição e comercialização), incluindo a identificação de possíveis práticas anticompetitivas e a verificação do cumprimento das normas de proteção de dados pelos agentes do setor; (item 501)

v) explore possíveis aprimoramentos regulatórios que visem melhorar o tratamento de dados dos consumidores pelas distribuidoras de energia elétrica, incluindo a elaboração de normas específicas para o setor de energia elétrica, que levem em consideração suas particularidades e desafios; (item 501)

vi) estude a implementação do conceito de Open Energy no mercado livre de energia elétrica, de forma similar ao que ocorre no setor bancário com o open banking, considerando as particularidades do setor elétrico. (item 501) "

76. No tocante à primeira delas, concordo com a Procuradoria. Trata-se de tema proximamente conectado ao subitem "ii" desse mesmo item 522.6 - correspondente ao item 428 do relatório, de que já tratei acima -, que, em síntese, também contém medidas para evitar a inefetividade da competição no mercado varejista.

77. Todavia, pedindo vênias por dissentir do Parquet, penso que as pertinentes recomendações dos itens "v" e "vi" não devem ser expedidas na forma de determinações. Noto que ambas representam a intenção deste Tribunal de colaborar com o aperfeiçoamento de ações do governo e não de imposição de medidas necessárias para corrigir ou prevenir irregularidades (Resolução TCU 315/2020, art. 2º).

***

78. Enfim, diante de todas essas considerações e análises, creio que se aprecia trabalho de extrema relevância para o setor que é fundamental para o desenvolvimento econômico e social do País. A realização da abertura de mercado com o devido zelo e com o necessário equacionamento de todos os riscos inerentes ao processo é essencial para que se alcance um serviço de qualidade, com eficiência e preços reduzidos para os consumidores.

79. A meu ver, o papel deste Tribunal nesse mister está sendo adequadamente realizado, com a indicação de inconsistências e lacunas a serem supridas para que a abertura atinja seus objetivos.

80. Não posso deixar de parabenizar a equipe de fiscalização da AudElétrica, que produziu trabalho de qualidade superior, abordando com objetividade e precisão os temas analisados. Agradeço também a importante participação do Ministério Público, que, por certo, enriqueceu sobremaneira as discussões.

***

81. Ante os exposto, acolhendo a quase totalidade da proposta da AudElétrica, e parcialmente as sugestões da Procuradoria, entendo que o Tribunal deve, nesta primeira fase do acompanhamento criado para avaliar o processo de abertura gradual do mercado de energia elétrica, expedir determinações, recomendações e ciência ao Ministério de Minas e Energia e à Agência Nacional de Energia Elétrica.

Assim, voto para que seja adotado o acórdão que ora submeto ao Colegiado.

TCU, Sala das Sessões, em 11 de setembro de 2024.

ANTONIO ANASTASIA

Relator

Documentos favoritos

Agora é possível adicionar tags e fazer anotações em documentos da pesquisa.

1 de 3